Um relato supremo

Com a paixão de admirador e o apuro técnico do jornalista, Ashley Kahn constrói um belo livro sobre um clássico do jazz
John Coltrane foi um saxofonista e compositor de jazz norte-americano
01/04/2008

A love supreme, obra do saxofonista John Coltrane, é um dos álbuns mais aclamados pela crítica especializada em jazz. Curiosamente, A love supreme é também um dos álbuns que contam com a admiração de músicos que, em comum, têm apenas o fato de terem sido influenciados pela música de Coltrane. As considerações acima, de certa maneira, por si só, atraem os ouvidos não somente dos amantes de jazz, mas, também, de pessoas que se interessam por esses fenômenos musicais capazes de superar e romper as barreiras dos gêneros. Imbuído pelas múltiplas sensações que o disco provoca, além da vontade de mostrar ao público os bastidores do nascimento de um álbum fundamental (entre outras coisas, porque foi o último gravado por Coltrane antes de morrer), o jornalista, produtor e professor Ashley Kahn assina o livro A love supreme — A criação do álbum clássico de John Coltrane.

Não é a primeira investida de Ashley Kahn nessa seara biográfica-musical. No ano passado, a propósito, também pela Barracuda, foi publicado o livro A kind of blue — A história da obra-prima de Miles Davis, no qual o autor disseca com brilhantismo os elementos essenciais para a gravação do marco na carreira do trompetista norte-americano. A essa altura, haverá quem diga que Kahn repetiu a fórmula e, com isso, criou uma espécie de franquia do gênero, ao reportar com amplos detalhes os bastidores de gravações de grandes álbuns de jazz. Essa hipótese, ainda que atraente e provocadora, acaba por não se sustentar, uma vez que os trabalhos são distintos. Pelo que se lê em Kind of blue, por exemplo, nota-se que o jornalista se propôs, do geral para o particular, abordar os anos que precederam a gravação do álbum de Miles Davis, contextualizando o cenário que envolvia o jazz naquele momento. Já em A love supreme, por sua vez, é possível observar que, do particular para o geral, Kahn recorta John Coltrane como personagem central para, depois, tratar do álbum, enfatizando sua relevância.

De fato, pode-se constatar essa espécie de estratégia logo no início do livro, quando se lê que Coltrane teve quase uma revelação três meses antes de gravar o disco. Depois, nas palavras de Kahn: “Coltrane entrou em estúdio para dar forma aos resultados de suas meditações por meio de um álbum com camada de músicas e significância, diferente de tudo o que tinha produzido. A love supreme era o título que ele tinha escolhido para este ambicioso projeto”. Neste relato supremo, posto que construído com a paixão do admirador e o apuro técnico do jornalista, Kahn faz com que os leitores sintam-se saudosos de um momento que não necessariamente presenciaram. É como se, efetivamente, o autor alcançasse o audacioso objetivo de transmitir a experiência da audição do disco para os leitores. Para tanto, ele não recorreu às técnicas do jornalismo literário — tática que, muitas vezes, pode tornar o texto artificial —, mas, partindo dos depoimentos dos envolvidos, consegue, em certa medida, resgatar algumas histórias e, por conseguinte, estabelecer um cenário compatível com o que foi vivido por Coltrane e por aqueles que participaram das sessões de gravação.

Amor supremo
Contando com todos esses detalhes, Kahn revela aos leitores que a obra de John Coltrane é uma oferta, um agradecimento, uma prece, para além de ser um grande disco de jazz. O livro apresenta, inclusive, uma análise dos trechos do texto de apresentação do álbum, conforme se lê adiante: “O texto de Coltrane contava a clássica história da redenção pessoal com um toque musical: homem arruinado, homem salvo, homem se dedica a Deus por meio de seu saxofone”. Nesse mesmo trecho, o jornalista ressalta que o autor daquelas linhas não era notório por sua eloqüência; ainda assim, conseguiu expressar também em palavras a grandeza do sentimento que buscava transmitir naquele amor supremo. Nesse ponto, observa-se, ainda, que Ashley Kahn analisa o disco sob pontos de vista distintos. Assim, embora seja a música de Coltrane o aspecto elementar para a compreensão do disco, o autor não deixa de prestar atenção em outras características, muito provavelmente para dar conta da elaboração de um contexto mais amplo para o leitor — que, não custa lembrar, é o grande beneficiado dessa abordagem.

Adiante, Ashley Kahn mostra como foi o recebimento do álbum pelos fãs, tanto os de jazz como os de música em geral, enfatizando o caráter “plural” da música do saxofonista, uma vez que, tal como algumas barreiras de gosto, também algumas fronteiras raciais foram deixadas de lado no momento de apreciação do disco. Em síntese, ao mesmo tempo em que era o disco dos jovens brancos mais antenados, era também a música dos jovens negros e, alguém chegou a dizer, “o surgimento de uma consciência negra”. Trata-se, claro, do arcabouço do discurso da minoria, que, alguns anos depois, graças aos estudos culturais e às políticas públicas, construiria um edifício politicamente correto. Kahn não entra nesse mérito, até porque este não é seu objetivo, mas sinaliza a importância cultural — aqui, no sentido antropológico — do álbum.

Depoimentos
E o mais interessante em todos esses detalhes é, sem dúvida, a maneira como o autor se propõe a contar essa história. Em vez de entrevistas, documentos, teses, ensaios teóricos e outras preciosidades absolutamente válidas, mas um tanto tétricas demais, Ashley Kahn diminui o peso do texto com uma prosa que se fundamenta nos relatos das personagens. Mais de uma centena de depoimentos, direta ou indiretamente, ganham espaço para construir essa narrativa. Esta é a senha: em nenhum momento, o jornalista se coloca como analista privilegiado porque é especializado em jazz; antes, convida o leitor a transitar pelo antes, durante e depois da gravação de A love supreme. E o leitor confere essa importância no destaque dado às declarações, entrecortando o texto de Ashley Kahn. Cumpre observar, no entanto, que tais referências não estão ali para confirmar uma tese, mas, sim, para ajudar a contar a história da criação de um álbum clássico, como bem sintetiza o título do livro.

Por essa razão, A love supreme, o livro, estabelece um tipo de narrativa que poderia ser adaptada à história musical brasileira. Sim, porque são relatos como esse, vivos na memória dos críticos e dos admiradores, que fazem com que os discos clássicos efetivamente se consolidem como obras fundamentais para o público e para a cultura de uma geração. Esse significado não pode ser conseguido apenas com os trabalhos acadêmicos, ainda que estes sejam de relevância comprovada. Nesse sentido, A love supreme, o álbum de John Coltrane, ganha novo entendimento graças ao olhar cuidadoso e elaborado do jornalista Ashley Kahn. Este, enfim, produziu um relato supremo.

A love supreme — A criação do álbum clássico de John Coltrane
Ashley Kahn
Trad.: Patricia de Cia e Marcelo Orozco
Barracuda
282 págs.
Ashley Kahn
Jornalista, produtor musical e professor, Ashley Kahn também é autor de Kind of blue — A obra-prima de Miles Davis. Como jornalista, foi editor de música do VH1 (canal de videoclipes) e um dos principais colaboradores da Rolling Stone Jazz & Blues Album Guide.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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