Um reencontro

Resenha do livro "História da inteligência brasileira", de Wilson Martins
Wilson Martins, autor de “História da inteligência brasileira”
01/10/2010

Talvez hoje eles sejam poucos, mas ainda há homens que não lêem livros: lêem bibliotecas. O crítico Wilson Martins (1921-2010) era desses. Ele testemunhou, “em tempo real”, a produção escrita brasileira a partir dos anos 1940 e ainda foi em busca dos primórdios, registrando o nosso legado ano a ano, pesando a contribuição de cada autor e cada livro para a constituição da História da inteligência brasileira. Esse é o título do seu monumental ensaio em sete volumes, painel que inicia declarando limpidamente que “A história da inteligência brasileira começa em 1550, quando o padre Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de latim no Colégio dos Meninos de Jesus, em São Vicente.” Desde a primeira linha o autor se mostra atento à influência da religião e da estrutura educacional sobre a nossa inteligência, assim como também esteve atento à estrutura jurídica, econômica, política etc., seguindo seu próprio ensinamento: quem entende só de literatura, não entende nem de literatura.

Já são quase 35 anos da sua primeira edição e agora a Editora UEPG traz mais uma vez esse livro que poucos leram e, nas suas 4 mil páginas, é um resumo de bibliotecas. Já deve estar pelos 25 anos que ouvi o nome Wilson Martins pela primeira vez, pois foi por esse tempo que conheci André Seffrin, outro leitor de bibliotecas. Influenciado por André, em 1987 me propus a ler aquele livro “gigante pela própria natureza”. Não cheguei à metade do primeiro volume: estava nos meus 20 anos, havia outras urgências. Mas ainda assim essa primeira e tosca tentativa já me fez querer perceber alguma coisa. Lembro de escrever ao André — ele já no Rio de Janeiro, começando sua carreira de crítico de literatura — contando minhas impressões de leitura e ele respondendo que sim, Wilson Martins era leitor de Claude Lévi-Strauss e também seu tradutor. Porém, a vida veio e levou a História da inteligência brasileira, deixando no seu lugar outras leituras, as longas horas nos bares, as sucessivas paixões, as tentativas de escrita e uma vida profissional mambembe que só aos poucos foi para seu rumo verdadeiro (isso levou mais de dez anos). Com os olhos de hoje, vejo que já era evidente que meu caminho só podia ser a palavra — sua produção, o ensino de algumas de suas manhas e principalmente a revisão de textos.

Foi assim que em 2009, duas décadas depois, reencontrei o livro de Wilson Martins: um telefonema dizia estar sendo preparada uma nova edição e, indicado por Miguel Sanches Neto, eu poderia ser o revisor. A empreitada era imensa, mas aceitei. Com o meu trabalho fixo, em horário comercial, meu tempo é escasso, mas aceitei. Só podia aceitar.

Reencontrei o livro; reencontrei, depois de 30 anos e por telefone, minha prima Beatriz Gomes Nadal, diretora da editora; e reencontrei o Brasil. Porque é do nosso país que se trata. Nas noites, madrugadas e fins de semana em que fui avançando lentamente pelo texto, fui vendo como o autor aborda, mais que a história da nossa inteligência e mais que os literatos, a nossa história. Ele trata de leis (que não cumprimos, em um fetiche muito nosso), a inserção do kardecismo, a inserção da homeopatia, figuras históricas. Por exemplo, antes de merecer uma biografia campeã de vendas e ir para as telas de cinema, o barão de Mauá já era detidamente considerado. E há o longo diálogo com Gilberto Freyre, grande intérprete do Brasil, assim como o professor Wilson Martins.

Fazendo a atualização ortográfica, também foi possível corrigir pequenos anacronismos involuntários (como “século passado” para o 19, já que o livro foi escrito quando o 19 era o século passado), pequenos deslizes como afirmar que frei Caneca era franciscano (em obra dessa envergadura, ocorrem esses problemas mínimos, cabendo a uma revisão atenta perceber). E pude aprender muito. Não apenas pelo número de páginas, esse é um dos grandes livros do Brasil. Na maré montante de publicações, na maioria descartáveis, História da inteligência brasileira é para ser lido. Há mais de 30 anos ele é assim.

História da inteligência brasileira
Wilson Martins
Editora UEPG
7 volumes
4.606 págs.
Renato Bittencourt Gomes

É escritor e crítico de literatura. Autor de Inventário e Descobrimentos: os Tecidos do Corpo.

Rascunho