Um pulo do armário

“Luzes de emergência se acenderão automaticamente”, novo romance de Luisa Geisler, mistura tradição e atualidade
Luisa Geisler, autora de “Luzes de emergência se acenderão automaticamente”
02/12/2014

Um livro feito com generosidade e que exige o mesmo do leitor. A autora praticamente desaparece por trás dos personagens que criou, principalmente os meninos no turbilhão sexual do fim da adolescência, início da vida adulta, tumultuando ainda mais o raiar das “gigantes” questões da vida em seus horizontes. E são tão reais. De cara, parece filme, escrito. Diálogos construídos com o jeito de se falar dos jovens em Canoas (RS), em 2011. Tem Facebook, muito sms, tem as bebidas da moda, as gírias, o sotaque, questões contemporâneas dos jovens da idade da autora (com menos de 25 anos). Não é no trabalho com a forma que a literatura nele se manifesta, mas talvez de seu jeito mais tradicional: na criação dos personagens, em descrições de ambientes, em registros de uma época — irônico, não é?, como diria a Alanis Morrissette (Alanis… já passou muito o tempo dessa moça?).

Há uma pista disso tudo pelas epígrafes: Tostói e Arctic Monkeys. Não sabe que banda é essa? Se não conhece, a internet salva. Boa banda de rock, tem feito muito sucesso (apesar da boa). A autora pode estar dizendo: “sou isso”. Ou, “este romance é isso”. Isso o quê? A intenção da mistura de tradição com atualidade. E o Tostói? Ah, se não conhece, sem nenhuma vergonha disso, largue o jornal e corra para a livraria mais próxima. Só vai fazer bem.

O título Luzes de emergência se acenderão automaticamente salta de um diálogo entre Henrique (Ike) e Dante (Dane). Ike costura todo o livro. Dane é quem o rasga (e torna o livro mais interessante, setenta páginas após a primeira linha).

Henrique tem um grande amigo que sofre um acidente aparentemente tolo, mas quase fatal, e entra em coma.

A autora escolhe Henrique como narrador da maior parte do romance, por cartas que escreve ao amigo desacordado no hospital. Começa nos últimos meses de 2011 e termina em julho de 2012. Há também, intercalando os capítulos com sequências de cartas, textos em terceira pessoa com diálogos. Nesses textos, a autora oferece outros pontos de vista da mesma história, dá informações que, mesmo fragmentadas, ajudam a construir o romance. E também oferecem a ela mesma a chance de escrever, em vez de “ser” o Henrique o tempo todo.

Mas não são as únicas escapadas da escritora.

Luisa parece vazar também em alguns (poucos) trechos das cartas de Henrique. Como? Não falando como ele, do jeito que foi inventado, que adora os palavrões, os tus, as gírias. Mas em trechos como este: “o relacionamento de vocês fazia muito que tinha se tornado uma árvore apodrecida, mas grande demais, as raízes grandes demais, os amigos e família em comum”. Ou no penúltimo capítulo, com uma carta bem mais literária do que a maioria das que havia escrito ao amigo Gabi no hospital.

Pode atrapalhar um pouco no quesito coerência do personagem, mas estranhamente essas habilidades literárias são bem-vindas. O escritor João Carlos Marinho, autor do clássico O gênio do crime, costuma dizer que o que importa mesmo não é o estilo, mas “a vida do livro”.

Sabe o papel que a gente amassa e joga no centro da sala bem arrumadinha? Só para lembrar que tem gente ali? Pois…

Já o Dante é gay. E ele bagunça as poucas certezas de Henrique, que namora uma garota (Manu), mas vai sentindo uma atração cada vez mais consciente pelo novo amigo.

Sexualidade
Luisa traz para a história várias questões significativas para os jovens. Questões que têm nuances de uma geração para outra. Voltando à generosidade: se o leitor não ocupa a desenrugada faixa dos 20 e poucos anos, tem a chance de conhecer algumas das questões dessa geração, se aproximar da vida dos outros, na impossibilidade de verdadeiramente entender o outro (Lévinas: “o outro é o infinito”).

Henrique gosta da menina que namora, transa com a menina, mas descobre a atração por um homem. O incômodo e o prazer disso vão sendo revelados nas cartas para o amigo, com descrições sobre as festas de que participa, as conversas com a namorada, os encontros com Dane. Entre fatos e sentimentos o tempo todo.

Há comumente entre jovens (e até entre não mais tão jovens) a necessidade de se definir sexualmente. E isso causa muita angústia, algumas visitas a consultórios de terapeutas (quando há dinheiro, onde há terapeutas). Então, esse romance tem sim uma importância social. Ao cair nas mãos de quem vive momentos de dúvida, provavelmente vai se transformar em cúmplice de muita gente que se sente isolada em plena multidão.

Em outras cartas, Henrique conta ao próprio amigo sobre seu estado de saúde, sobre seus pais, principalmente a mãe, que sofre muito com a situação.

Na vida que segue, busca outro emprego que não o das madrugadas numa loja de conveniência em posto de gasolina, o descontentamento com a cidade natal, Canoas, que considera provinciana (como milhares pelo Brasil, pelo mundo — a vida em cidades pequenas e médias é uma questão universal). Tem a preocupação com o futuro — o atrás daquela porta ilusória que parece existir entre a juventude e a vida adulta.

Nesse ponto, será curioso, em uma hipotética entrevista com Luisa Geisler daqui a talvez trinta anos, ouvir dela própria sobre o que achava da passagem do tempo nessa idade. Logo no primeiro capítulo, escreve: “Como o tempo que só se nota nas rugas, o café mofou”. O tempo não se nota nas pessoas apenas nas rugas. Há outros sulcos invisíveis e doloridos que marcam bem menos esteticamente o tempo que passa. No entanto, entre as páginas 216 e 217 do romance, ela enxerga a mesma questão com complexidade admirável para alguém jovem. Henrique, numa carta, tem a seguinte reflexão: “Tenho a sensação de que vou ficar o resto da minha vida procurando o que é que eu quero fazer e tal e nunca vou saber exatamente. Esse sentimento adolescente meio que permanece. Eu aos dezoito vou achar que aos vinte e dois vou saber, e daí aos vinte e dois vou achar que vou saber aos vinte e cinco, aos vinte e sete, aos trinta, aos trinta e cinco. Quando tu vê, tu não tem mais chances de fazer o que tu quer porque tu passou todo esse tempo procurando o que era isso”.

Escolhas
A criação de personagens é um dos principais desafios em um romance. Luisa Geisler faz bem esse trabalho. Henrique é vivo, Dane é vivo, Manu é viva. Até o menino em coma é bastante crível. Se a falta de um trabalho mais elaborado com a linguagem faz falta a leitores que se importam mais com a forma, ao mesmo tempo é relevante o registro da oralidade desse nosso tempo, no jeito de ser das pessoas na região de Canoas (Grande Porto Alegre).

A opção pela linearidade da narrativa faz com que o leitor possa demorar um pouco para engatar no livro — como está dito antes, Dane, o menino que bagunça a cabeça de Henrique, só chega setenta páginas após o início. Mas vale a pena, sem dúvida.

Aliás, leitor, quer uma dica? Alimente a esperança, porque é do jogo, mas não crie dependência pelo fim da história. É o tipo de livro que não está no fim, mas é seu próprio decorrer.

Luzes de emergência se acenderão automaticamente

Luisa Geisler
Alfaguara
295 págs.
Luisa Geisler
Nasceu em Canoas (RS), em 1991. Chamou atenção quando ganhou o prêmio SESC de Literatura em 2011, categoria Contos. No ano seguinte, ganhou o mesmo prêmio na categoria romance — importante dizer que os livros são mandados para análise sob pseudônimos. Ambos, Contos de mentira e Quiçá, foram publicados pela Record (a publicação é o prêmio).
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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