Um espaço para guerrear. Um ringue? Um espaço para dialogar. Uma conversa? Um espaço para sonhar. Um intervalo? Um espaço para amar. Um leito? Um espaço para cantar. Um palco? Um espaço para seduzir. Uma crônica? Pode ser. Por que não? Se viver exige, mesmo, inventar, reinventar a própria vida, Affonso Romano de Sant’Anna inventa, reinventa a crônica e luta, dialoga, sonha, ama, canta e seduz. Por que não? O artista com repertório refinado atinge a retina de todo e qualquer leitor, e leitora, e desvenda e apresenta conhecidos e inusitados horizontes. É um pouco disso — e mais, bem mais — que se dá nas páginas de A cegueira e o saber.
Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de descrever as sutilezas da inexistente veste real, o imperador está ou não está nu? Está e não está. Como diria Nathalie Heinich: “O rei está vestido pelo olho do outro”. A linguagem pode ocultar ou desvelar. E esse é um jogo difícil e perigoso de se jogar.
O fragmento faz parte de uma das várias crônicas da série A cegueira e o saber, em que Affonso Romano de Sant’Anna parte da conhecida lenda A nova roupa do imperador — de Hans Christian Andersen — rumo a reflexões e conversas com o possível leitor. Conversas. Sim. Affonso Romano de Sant’Anna, no espaço crônica, não quer, por exemplo, convencer. Ao contrário. Quer conversar. Abre, sim, portas. E, ao leitor, basta aceitar o convite.
Cultura. Jogos do poder. Política. Política literária. Obras. Autores. Andersen. Saramago. Calvino. Sherlock Holmes. Proust. Gide. Romain Rolland. Clarice. Flaubert. Robert Graves. Elizabeth Bishop. Cervantes. Agenor Soares de Moura. Neruda. Nãos. Sins. Talvezes, etc. Affonso Romano de Sant’Anna torna o espaço crônica um espaço público para discutir temas que habitam o seu imaginário. E, então, um desses textos, publicado no jornal, num dia qualquer, pode — por que não? — acender luzes, imprimir cores e descortinar idéias em meio ao cotidiano, muitas vezes apagado, cinza e árido. Basta — isso mesmo — apenas aceitar o convite.
Na crônica Fazer emergir a poesia, Affonso Romano de Sant’Anna convida o leitor, a exemplo do que faz nos cursos que ministra no planeta Terra, a encontrar a poesia. Que está numa notícia do jornal. Que está no letreiro da avenida. Que está em qualquer cotidiano. Que está a seu lado, leitor do Rascunho. E, uma noite, Affonso Romano de Sant’Anna, num jantar com alunos em Madri, deparou-se com uma escada em caracol que terminava abruptamente em uma parede. Uma escada que não levava a lugar nenhum. Lá, naquele restaurante espanhol, a poesia acontecia, aconteceu diante de todos. E o poeta mineiro não desprezou o acaso:
No Bar Ladino, em Madri,
vi, numa noite, uma escada
que tinha estanha magia,
pois saindo do concreto
ao nada nos conduzia.
Os degraus de tal escada
negavam toda engenharia,
e a razão, em caracol,
sofrendo se contorcia,
pois só se a pode galgar
com os pés na poesia.
O que é a crônica? Um espaço para o lirismo em meio ao mais do mesmo? Um pause na utilidade das coisas? Um drible no factual? O que é a crônica, leitor de crônicas? A crônica talvez seja tudo aquilo que o cronista chame de crônica. A crônica pode ser o legado de Rubem Braga, o texto dominical da Danuza Leão ou do Wilson Bueno, o exercício diário do Carlos Heitor Cony, as duas performances semanais do Luis Fernando Verissimo. No entanto, sobretudo, e entre tantas possibilidades, crônica não apenas pode ser mas, mesmo, é a experiência contínua desenvolvida por Affonso Romano de Sant’Anna e veiculada em jornais brasileiros. Experiência essa que comportou a coragem do autor — em sintonia com o título deste livro — de apontar que nas artes plásticas o rei também está nu (E todos os leitores do Rascunho sabem do que estou a falar, não sabem? Até mesmo, por exemplo, o Arnaldo Jabor sabe, não é mesmo Jabor?).