Um poeta no alto do monte

Resenha do livro "A cruz e a forca", de Daniel Mazza
01/06/2009

Quem lê sobre a poesia contemporânea brasileira depara-se com a idéia de que ela é plural, visto que nenhum poeta hoje quer pertencer a um estilo, muito menos se vincular a um movimento para evitar o estigma de ingênuo e/ou ultrapassado, proveniente da repulsa que os de hoje têm pela, ainda que hipotética, associação entre arte e política.

Mas saindo da leitura sobre e passando à verificação da própria poesia, pode-se perceber que tal pluralidade é relativa e menos diversa do que se possa imaginar. Tomando poetas representativos, veremos uma poética bastante semelhante, sobretudo por se pautar pelo exercício do experimentalismo.

Sendo assim, é satisfatória a aparição de A cruz e a forca, segundo livro do jovem poeta cearense Daniel Mazza. Com grande capacidade de execução das técnicas do texto em verso (seja tradicional ou moderno), Mazza constrói uma obra já pertencente à linhagem dos grandes autores nordestinos, tratando do mortificado espírito sertanejo como simbologia de entraves que extrapolam demarcações geográficas.

O primeiro poema do livro mostrará bem a autenticidade de seu autor, a começar pelo tema — a morte — e, em seguida, pelo rearranjo da sintaxe e do emprego ordinários das palavras segundo suas classes, a fim de que o espírito da poesia determine o corpo a ser habitado por ela: “A Morte é um jardineiro sem podão/ Que não cultiva ou água em sua lida”.

Se para João Cabral a morte era o primeiro e mais perceptível sinal de vida dos sertanejos degradados pela seca, para Augusto dos Anjos ela se torna a consumação da tese niilista, indicando a vitória do não sobre o sim. No caso de Mazza, a morte é ainda uma esfinge, a nos devorar enquanto não a deciframos: “Sendo o homem uma planta inaudita,/ Extirpado da terra é quando então/ Germina, imarcescível, para a vida?”.

Numa época em que se costuma dizer que a poesia não tem qualquer serventia, A cruz e a forca põe-se ao lado das obras cuja função é uma das mais nobres que a arte apresenta ao longo da história: fazer constatar nossa ignorância frente à vida ao mesmo tempo em que nos impulsiona a conhecê-la, nascendo com ela.

É assim que (lembro o poeta-filósofo Márcio-André, para quem o paradoxo “é uma palavra inventada para suprir nossa incapacidade de entender o absurdo do mundo”) alguns poemas ensinam que a morte é a vida em seu contínuo ato de “outrar-se”, dando-nos a ver que se pode experimentar o apocalipse quando ainda vigora a engrenagem biofísica do homem. É a morte social, que sobretudo no Nordeste brasileiro ainda continua a mandar homens brutos e fortes para a cidade, condenando os que ficam à severidade da existência, como se vê em Morte na cruz: “Viveu a primeira morte,/ Comeu o pão de madeira./ Morreu a segunda morte,/ Que é a morte verdadeira./ Morreu a segunda morte,/ A morte proba e cega/ Como a justiça, que é a morte/ Que a todos os homens sega”.

A arte de Daniel Mazza desconhece fronteiras temporais e espaciais. Nutrida pelo solo cearense e pelos ares do nosso tempo, ela traduz as espinhas que se agarram na garganta dos homens, flagelando-as por todos os séculos, das terras da Palestina às do Sertão. A ponte dessa universalização tem bases em dramáticos sentimentos humanos, como a covardia e o remorso, e também em fatos da atordoante realidade das vítimas da pólvora, nas cidades interioranas e nas metrópoles, tema do estupendo A bala viva: “O tempo de uma bala,/ Tempo sincronizado,/ Quando a vida e a morte/ Dão as mãos num bailado,/ Dançando ao estampido/ Da arma desafinada:/ Instrumento que toca/ Música polvorada”.

A cruz e a forca, de Daniel Mazza, é alvissareiro. Enquanto vários de seus confrades fazem uma poesia de laboratório, dependente de um discurso crítico que a sustente, o cearense se posta no alto do monte, fazendo da seca areia sertaneja (farelo do coração humano) o barro vivificador de sua estética. Ele nos dá uma obra interessada em esbarrar no leitor, como a nos dizer que nem só de palavras vive a poesia.

A cruz e a forca
Daniel Mazza
Book Editora
110 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho