Um poeta em Marrakech

“As vozes de Marrakech”, de Elias Canetti, é o testemunho de uma odisséia por terras tão reais quanto imaginárias
Elias Canetti, autor de “Sobre escritores”
01/05/2007

Em uma de suas palestras na Universidade de Harvard, em 1968, Jorge Luis Borges declarou que “um dos pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente”. Oito anos mais tarde, Elias Canetti iria dizer em seu discurso intitulado O ofício do poeta: “O que ocorre, na realidade, é que ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo”.

Trazendo os depoimentos de Borges e Canetti para os nossos dias, podemos ler em ambos uma alusão à literatura contemporânea e, a partir daí, repensar esse apelo à dúvida, ao descentramento, à quebra de prévias convicções, o que talvez nos pareça uma idéia um tanto distante da condição do escritor em tempos de generalizada espetacularização da autoria e especialização da atividade criadora.

Para Canetti, é tarefa do poeta exercitar “o dom da metamorfose”, ou seja, o dom de transformar-se em um outro qualquer, um anônimo, enfim, alguém alheio à vaidade da fama, de tal sorte que, dentro dessa vivência multifacetada, dessa imprevisível aventura da alteridade, também uma nova forma de saber seja encontrada. Cabe ao poeta, em outras palavras, despojar-se da objetividade produtiva, abrir-se para o indeterminado, apostar em uma lógica sensível, só ela capaz de tramar uma ordem oculta sob o caos. Em suma, deve o poeta ser livre, ter um espírito livre, menos autoconsciente do que incerto de suas possibilidades.

É assim que, disposto à gratuidade do acaso, Elias Canetti faz sua viagem ao Marrocos, em 1954, tomando contato com uma realidade cuja “beleza-prima” apenas um olhar aparentemente distraído e desapegado de preconceitos conseguiria capturar. As crônicas de As vozes de Marrakech são, pois, fruto dessa beleza repentina, testemunho de uma odisséia por terras tão reais quanto imaginárias. Não se trata simplesmente de um diário de viagem, nem tampouco de um excêntrico relato autobiográfico de um dos grandes nomes da literatura mundial — não há neste livro quaisquer obviedades do gênero, muito ao contrário: trata-se aqui de um acesso ao poético, na experiência de uma plena liberdade dos sentidos.

Praças, ruelas, becos, quartos, terraços: cada lugar tem seu aroma, seu crepúsculo, seu instante de eternidade. Cegos, crianças, mendigos, comerciantes, artistas da palavra: cada qual com sua fome de vida e sua mágica de sons. Centenas de mãos: que tecem, tingem, examinam, escrevem, saúdam, afagam, outras que esperam, sempre estendidas, uma esmola, outras ainda impressas nas paredes e nas portas, em tom de azul, “para espantar o mau olhado”. Tudo é motivo de contemplação e escuta: “arabescos acústicos em torno do nome de Alá”, “velhos judeus luminosos à maneira de Rembrandt”, “sílabas hebraicas como gotas de chuva”, “olhares hostis, frios, indiferentes, reprovadores e infinitamente sábios”. No horizonte sobre as casas, andorinhas: “uma segunda cidade, tão rápida quanto é lenta a cidade dos homens”.

Guardião das metamorfoses
Tudo fala em Marrakech, seus bazares, seus mistérios femininos, ladainhas e silêncios. Quem dá voz a este surpreendente mundo dentro de uma cidade é um estrangeiro, hóspede das pequenas circunstâncias, um poeta, podemos dizer, nos termos com que Elias Canetti define o verdadeiro poeta: “o guardião das metamorfoses”. Alguém que, desconhecendo o povo marroquino, esteve no meio dele para se deixar visitar por uma “substância densa, maravilhosamente luminosa” de “acontecimentos, imagens, sons (…) que não foram registrados nem recordados por meio de palavras, que são mais profundos e mais significativos que estas”. Mosaicos, recortes, vestígios da realidade, portanto, recuperam a vida para a linguagem, nessas crônicas. Passado e presente compondo, juntos, a densidade desta “substância luminosa”.

Em Narradores e escreventes, encontramos Canetti no centro de Djema el-Fna, face a face com o duplo poder da literatura: o ardor da palavra viva, na voz e no gesto dos narradores, e a “dignidade silenciosa do papel”, entre os escreventes da praça. Tal coexistência, de diferentes tempos e espaços, serve ao próprio viajante como uma rara oportunidade de reconduzir a herança das metamorfoses literárias para a escrita, acrescentando a elas um novo olhar, uma nova dimensão narrativa, que tem na palavra o vigor da memória. No rastro de um outro remoto viajante, Canetti percorre Marrakech simultaneamente como hóspede e narrador da cidade.

Em Visita ao Mellah, mais uma vez, a manifestação de uma ancestralidade: “Tive a impressão de ter alcançado a verdadeira meta de minha viagem. Não queria mais sair; já estivera ali centenas de anos antes, esquecera tudo e agora tudo voltava. Encontrava ali a mesma densidade, o mesmo calor vital que sentia dentro de mim. Eu era essa praça em que estava. Creio que continuo a ser essa praça”. Eis aqui o nosso visitante, no coração do bairro judeu, transmudando-se no lugar visitado, exercendo até as últimas conseqüências seu poder de metamorfose.

Mas, para a assimilação de tantas atmosferas e vozes, também “é preciso um espaço fechado a que se tem algum direito e no qual se pode ficar sozinho”, um refúgio de silêncio onde o poeta se resguarda por um momento de todos os outros rostos, luzes e sons. Entre dois espaços, casa e mundo, o estrangeiro mantém seu anonimato, como aquela misteriosa criatura camuflada por um pano, o corpo rente ao chão, no meio da multidão de Djema el-Fna, que atrai a atenção de Canetti por sua presença oculta e obstinada, uma criatura cuja vida fora reduzida a um único som: “Talvez não tivesse braços para pegar as moedas. Talvez não tivesse língua para formar o l de ‘Alá’, de tal modo que o nome de Deus se reduzira a um ‘ä-ä-ä-ä-ä-ä-ä-ä’. Mas ela vivia e, com zelo e constância sem iguais, pronunciava seu único som, pronunciava-o por horas a fio, até que fosse o único som na vasta praça, o som que sobrevivia a todos os demais”.

Pois é graças a uma resistência anônima, livre do propósito de sucesso, graças a uma abertura irrestrita para o mundo, livre de objetivações do saber, que o poeta toma parte em sua “responsabilidade para com a vida que se destrói, e não se deve ter vergonha de dizer que essa responsabilidade é alimentada pela compaixão”, como disse Canetti em 1976, em um discurso que permanece absolutamente apropriado para o ofício do escritor nos dias de hoje. No itinerário desta viagem pela experiência sensível de um poeta em Marrakech, temos, portanto, a chance de rever a própria literatura contemporânea, para nela infundir seu valor de indeterminabilidade, isto que a faz enigmática, pulsante e intimamente caótica, à imagem e semelhança da própria vida humana.

As vozes de Marrakech
Elias Canetti
Trad.: Samuel Titan Jr.
CosacNaify
112 págs.
Elias Canetti
Nasceu em Ruschuk, na Bulgária, em 1905. Filho de judeus sefarditas, Canetti passou sua infância e juventude entre Manchester, Viena, Zurique, Frankfurt e Berlim, tendo vivido no exílio, a partir de 1938, em Londres e Paris. Conhecido internacionalmente como um dos principais escritores de língua alemã do século 20 por sua obra ensaístico-filosófica e memorialística, dedicou-se ainda à ficção e à dramaturgia. Doutor em Química, ganhador dos prêmios Georg-Büchner (1972) e do Nobel de Literatura (1981), entre outros, Elias Canetti teve uma vida marcada pelo estudo das línguas clássicas, uma intensa reflexão sobre as origens e as formas de totalitarismo, além do contato com grandes personalidades de sua época, a exemplo de Karl Kraus, Bertolt Brecht, George Grosz e Isaac Bábel. Dos livros de sua autoria já publicados no Brasil, destacam-se A consciência das palavras, Auto-de-fé, As vozes de Marrakech, O todo-ouvidos e sua trilogia autobiográfica A língua absolvida, Uma luz em meu ouvido e O jogo dos olhos. Faleceu em 1994, em Zurique, na Suíça.
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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