O poeta Celso de Alencar diz que Deus lhe deu a liberdade para ser louco e por isso ele odeia as estrelas do Brasil. Essa confissão num dos poemas deste O primeiro inferno e outros poemas revela, antes de tudo, a postura de um poeta que tem na poesia não apenas uma forma de expressão, mas seu olhar mais nítido de observação a um mundo sem saída.
O poeta Cláudio Willer tem razão quando diz que Celso de Alencar “é o poeta mais enfático dos poetas contemporâneos brasileiros. Escreve com furor messiânico, com a veemência dos profetas”. Jorge Mautner observa: “Celso de Alencar é um poeta cercado de tantas referências infernais, que tem um parentesco com um outro poeta irmão gêmeo, de universo paralelo, chamado Charles Baudelaire, que diz: ‘Oh! Satã, tu que és o rei dos anjos, tende piedade de nossa longa miséria’”.
O poeta, nascido na cidade de Abaetetuba, no Pará, em 1949, vive em São Paulo desde 1972. Seus livros publicados são Tentações (1980), Salve Salve (1982), Arco Vermelho (1983), e Os reis do Abaeté (1987). Sua poesia é um discurso inflamado feito especialmente com imagens sem retoques, fotografia de instantes do absurdo e das cenas que nem todos conseguem ver.
Este é um livro denso, de uma poesia mergulhada sobretudo na realidade dos sentimentos, nesse lugar onde vive a alma do homem, onde vivem os gestos brancos, as faces pálidas e as feridas de cortes profundos. Calado no inferno de seu próprio grito, o poeta teme os finais das tardes, não sobe nos postes de linhas telefônicas e não arrasta os calcanhares nas beiras das calçadas. Mas coleciona relógios e falanges pretas. Tem pavor das estrelas próximas às janelas. Ele tem um alerta: “Não te iludas com os ventos de setembro/ os ventos da primavera matam mais”.
As imagens ferozes deste livro mostram um poeta que tem na poesia sua última palavra para reinventar o mundo, ou a vida, ou o poema. Ele cumpre o seu papel com uma poesia honesta, acima de qualquer suspeita. Nesta paisagem dolorida de tantos equívocos, a poesia de Celso de Alencar se firma como manifestação de arte literária e poética enobrecedora, o que significa que nem tudo está perdido. Não é um poeta, no entanto, mergulhado apenas nas formas literárias. Não. O poeta, no caso, é também um observador social, desses que se detêm diante do flagelo da miséria, dos que estão à margem, dos que não têm mais o direito de sonhar.
Fotografia perfeita desse ferimento é o poema 17:
Ontem passei em frente ao
albergue da prefeitura.
Uma grande fila formava-se na entrada.
Lá estavam homens sem braços, homens sem
pernas, homens sem dentes.
Cinqüenta e três miseráveis fugiam da morte.
Olhei seus rostos. Um por um.
O penúltimo deteve-me o pulso direito e
acusou em mim febre amarela.
Era um homem branco com cabelos vermelhos.
Distinguia-se não pela cor dos cabelos nem
pelo saco de bala de hortelã.
No seu olho direito aparecia esparadrapo e gaze.
E sem que eu pedisse,
tirou o curativo e mostrou-me o câncer.
E sem dar tempo para refazer-me, perguntou-me
se eu falava sua língua.
Celso de Alencar escreve uma poesia livre, dessas palavras que saltam da boca em gritos noturnos, que vão da alucinação à leveza de acenos da reminiscência, onde vivem as imagens quase sempre derradeiras. Acima de tudo, um poeta de seu tempo, que não faz concessão alguma para as facilidades reinantes dos equívocos da poesia brasileira. Um poeta que tem a poesia como missão, sacerdócio de todos os momentos, para que afinal a vida possa se realizar.
Poema 8
Celso de Alencar
Eu estou nesta cidade
voando nos negros das ruas
feito touro louco
à procura de bocas que
não me digam palavras mortas.
Só o diabo conhece meu destino.
A minha dor é o vento que
corta meus lábios.
É o labirinto e a azia
de órfãos sem mãos.
Eu não digo adeus.
O mundo é um caminho de roçado
e a morte, espírito dos espíritos,
língua de cobra feroz, me proíbe.
Que me sustenta nesta cidade
onde o semáforo é vermelho
e onde se embalsama a capivara,
são os olhos mágicos
e minha língua canalha.
Eu persisto nos lugares em que
se findam as avenidas e nos
lugares que mastigam meus dentes.
Os meus erros são muitos
muitos erros do inferno
que o tempo (a morte, o facho invisível)
não ousa levar à sepultura.