A obra de Fernando Pessoa tem tido, ao longo dos anos, uma prodigiosa expansão. Expansão não apenas em termos de público leitor, mas em termos de obra, já que numerosos inéditos do poeta foram sendo revelados e continuam aparecendo a cada dia. Enquanto isso, os heterônimos passaram dos três inicialmente conhecidos a 74, segundo Teresa Rita Lopes, e ao fantástico número de 127, segundo seu biógrafo brasileiro, José Paulo Cavalcanti Filho. Muitos textos vieram à luz nas últimas décadas: escritos psicografados, mapas astrológicos, textos misóginos, argumentos cinematográficos…
Como se sabe, ao morrer em 1935, Pessoa deixou uma arca cheia de papéis. A esses se juntaram outros que estavam fora dela, até chegar-se à soma de 27.543 textos e seis documentos (acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa). O poeta tão prolífico havia publicado relativamente pouco: três plaquetes com poemas em inglês, um livro patriótico-sebastianista e textos dispersos em jornais e revistas.
Mas foi guardando tudo o que escrevia naquela arca. Os papéis ali depositados têm os mais variados suportes (cadernos, folhas avulsas de tamanho normal ou simples bilhetes). São ora datilografados, ora manuscritos, ora mistos. Às vezes, têm o aspecto de textos acabados, mas muitos deles são apenas apontamentos e rabiscos. Os manuscritos oferecem grande dificuldade de leitura. Um verdadeiro exército de pessoanos, agora oriundos de diversos países, tem-se dedicado à tarefa de os decifrar e publicar.
Mais um trabalho importante acaba de ser publicado: o conjunto de poemas franceses de Pessoa. Para o poeta, o francês era uma língua secundária, não arraigada à sua personalidade como era o inglês. Embora ele tenha lido muita literatura francesa, sua prática escrita da língua se reduzia a cartas comerciais. Mesmo assim, entre seus múltiplos projetos irrealizados constava a publicação de seus poemas franceses, alguns reunidos num envelope com a rubrica: French Poems.
No Brasil, conhecemos, desde a edição da Obra poética, realizada por Maria Eliete Galhoz para a Editora Aguilar, em 1960, alguns poemas em francês. Em outras edições de suas obras, esses poemas foram geralmente relegados a um apêndice ou a notas. Progressivamente, outros foram aparecendo. Entre os diversos pseudônimos usados por Pessoa, figura um francês, Jean Seul de Méluret, ensaísta e autor de alguns manifestos. Mas não há indícios de que os poemas pertençam a esse pseudônimo. Alguns dos mais antigos, datados de 1908, são assinados pelo heterônimo anglófono Alexander Search. Uma única vez, em 1923, o poeta publicou poemas em francês: Trois chansons mortes, na revista lisboeta Contemporânea. São poemas graciosos, que ele mesmo qualificou de “brincadeiras”. Os que ele não editou, e até mesmo os que deixou incompletos são melhores do que esses.
Tem sido opinião corrente, entre os leitores de Pessoa, que a escassa produção de Pessoa em francês é literariamente fraca, se comparada à sua produção em português e em inglês. Ora, uma nova edição desses poemas pode nuançar esse juízo. O pesquisador Patricio Ferrari efetuou um levantamento exaustivo nos arquivos pessoanos e acaba de publicar a primeira edição completa dos textos pessoanos em francês.
Pessoa escreveu poemas nessa língua desde sua juventude, em Durban, até os últimos anos de sua vida. Em seu arquivo, Ferrari encontrou 33 poemas completos e cerca de 200 textos em francês, divididos entre poemas incompletos, fragmentos de poemas, traduções, frases ou versos isolados. O próprio editor observa que se trata de “um corpus em grande parte desagregado e inacabado”. Numa cuidadosa apresentação, Ferrari retraça a história das publicações anteriores de poemas pessoanos em francês, de 1952 até a presente data, e retifica alguns enganos nessas publicações, como a atribuição a Pessoa de traduções efetuadas por ele.
O trabalho de Ferrari é uma proeza de argúcia e persistência. Trata-se de uma edição crítica com notas e variantes, mas destinada, segundo o editor, a “um público leitor mais amplo que os círculos especializados na obra de Fernando Pessoa”. Permito-me duvidar um pouco do interesse de leitores pouco afeitos à obra pessoana por sua poesia em francês. Os textos apresentados nessa antologia são desiguais e, na maioria, apenas esboçados, como esquemas vazios preenchidos por alguns versos e algumas rimas. Os leitores de língua francesa poderão se indispor diante de erros e estranhezas sintáticas. Os de língua portuguesa, por sua vez, poderão comparar esses poemas com aqueles escritos em português, e considerá-los menores. O mesmo pode ocorrer com os apreciadores de seus poemas em inglês. Entretanto, isso em nada afeta a importância desta edição, pois ela interessará aos apaixonados pelo poeta, que já constituem uma multidão internacional.
A edição é prefaciada por Patrick Quillier, tradutor e editor de Pessoa na coleção Pléiade da editora Gallimard. Além de profundo conhecedor da obra pessoana, Quillier é músico, o que lhe permite formular observações relevantes sobre a musicalidade, os ritmos e os silêncios desses poemas. Aos especialistas, eles fornecem muitas sugestões de pesquisa no campo da literatura comparada e dos estudos de intertextualidade. Como aponta Quillier, podemos ver nesses poemas o aproveitamento e apropriação das leituras francesas do poeta: Baudelaire, Verlaine, Mallarmé e outros.
Os poemas incompletos, que são muitos, oferecem indicações sobre o método de composição do poeta. Trata-se, muitas vezes, de arcabouços de poemas metrificados e rimados, com muitos espaços deixados em branco. Geralmente temos o primeiro verso (dom dos deuses, segundo Valéry), e depois só alguns fragmentos e as palavras finais que deverão rimar. Fica claro, nesses rascunhos, que o ritmo e a musicalidade pressentidas eram mais importantes, para o poeta, do que o léxico. Deixados assim, esses rascunhos parecem espectros poéticos, desafiando os leitores para que os completem.
E para todo ou qualquer leitor de poesia, eles oferecem belas surpresas: versos maravilhosos perfeitamente franceses, ou “erros” que constituem inovações da língua. Alguns exemplos: “L’infini de la mer troublée d’aucun humain/ Et la splendeur sans fond du ciel ému d’étoiles”; “Mon âme aux volets clos sent la vie au dehors”; “Il fait douleur. L’espoir se serre tel un noeud” ; “La chaste extension turbulente des blés”; “Je ne savais pas que l’amour était si réel”.
Ou esta pequena estrofe extraordinária, que “desenha” o tema como um ideograma:
Et aussi la pluie…
Aux vitres la nuit
Une goutte luit
Par mon oeil sentie,
Suivie… finit…
A temática é, em geral, a mesma dos poemas em português: a tristeza, a sensação de vazio e de inexistência individual, a superioridade do sonho sobre a realidade, as dificuldades do relacionamento amoroso. Um exemplo disso é este pequeno poema tão pessoano:
Assis au rêve de penser,
Mon cœur regarde l’eau couler…
Je me vois dans l’eau bleue qui coule
Tel que je n’ai jamais été…
Por vezes, vemos surgir um Ricardo Reis francês:
Caressons l’heure. Elle est brève
Mon amour n’est que mon rêve
Mon rêve de ton amour
Mas a prova de que, para escrever em francês, Pessoa se colocava dentro dessa língua, de sua sintaxe e sua sonoridade, é que uma retroversão deste ou de outros poemas não daria bom resultado em português.
Na infância, Pessoa inventara um companheiro francês, o Chevalier de Pas. É interessante notar a frequência, nesses poemas, da palavra pas como substantivo [passo ou passos] ou como advérbio de negação. Os passos são os da morte (“Seule la mort ne porte a notre ouïe/ Le grand silence de son pas”), ou de um deus silencioso (“Nous regardions dans l’ombre où Dieu s’est tu./ Et il n’y avait de bruit que la fuite de pas”). Já o advérbio, este rima com las [cansado] (“Ne chantez pas!/ Votre voix enchanteresse/ Me laisse/ las”) ou com bas [baixo] (“Notre savoir ne le sait pas!/ Parlez plus bas”).
Enfim, vale a pena seguir os passos do Chevalier de Pas e ler os poemas franceses de Pessoa.