Um passo além do crime

Romances policiais como os de George Pelecanos começam a se tornar importantes para discussão de mazelas sociais
George Pelecanos, autor de “No inferno”
01/04/2008

Espera-se dos romances policiais que sejam realistas, ou seja, reproduzam com certa fidelidade a realidade dos grandes centros urbanos (se essa fidelidade é possível em literatura, isso é outra discussão). Não é à toa que a geografia das cidades é tão importante nessas histórias. Apesar disso, o escritor de romances policiais não possui, a priori, qualquer responsabilidade de denúncia, política, social, criminal. Busca-se, acima de tudo, um efeito literário, não um retrato ou uma reportagem sobre a sociedade.

Ainda assim, vem-se fortalecendo a idéia de que o gênero, nos últimos anos (ou décadas), estaria assumindo um papel que já pertencera, outrora, ao romance social. Não se trata apenas de reconhecer a realidade e descrevê-la com contundência, mas de denunciar as mazelas sociais, e retratá-las criticamente. Neste sentido, o elemento social ― a máfia, o tráfico de drogas, as gangues juvenis ― teria mais importância do que a lógica investigativa ou a mente criminosa de exceção. A estrutura investigativa do antigo romance de enigma perde terreno não apenas para a ação, mas para a descrição dos determinantes sociais que sustentam o crime, organizado ou não (e, no caso brasileiro, há algumas especificidades que não poderiam ser discutidas agora).

O escritor Dennis Lehane, por exemplo, é da opinião de que o romance policial nunca foi tão bom quanto hoje, e essa alta qualidade se deveria ao fato de que os autores souberam modernizar as fórmulas antigas e assumir uma responsabilidade que outrora não existia: “a literatura de crime substituiu o romance social como o lugar por excelência das doenças de nossa sociedade”, declarou o autor de Sobre meninos e lobos para a Folha de S. Paulo, em entrevista a Cassiano Elek Machado, em 5 de março de 2005. O escritor Michael Connelly possui opinião semelhante. O autor de O poeta disse recentemente à revista Época que, embora não seja “função do escritor ser didático ou fazer proselitismo por meio de sua obra ficcional”, ainda assim, “de alguma forma, o romance policial cumpre no século XXI a mesma função que era do romance social dos séculos passado e retrasado. O romance de crime tem, assim, a função de captar a realidade antes dos outros gêneros literários. É o veículo dos grandes dramas e dilemas atuais” (entrevista concedida a Luís Antônio Giron, em 7 de dezembro de 2007).

Talvez esses escritores estejam supervalorizando seu trabalho, em busca de legitimação e de reconhecimento artístico. Mas, se Lehane e Connelly estiverem certos, isso significa que o policial teria alcançado legitimidade fora da categoria de “simples” entretenimento para se tornar um veículo importante para a exposição e discussão de determinadas mazelas sociais. Com destaque, claro, para a violência.

Conflitos raciais
Neste contexto, é fácil entender o apreço de Dennis Lehane pelos livros de George Pelecanos. Autor de quase duas dezenas de romances, Pelecanos também é conhecido por ter escrito e produzido a série televisiva The wire, para a HBO. Nos últimos anos, seus livros vêm se destacando pelo tom abertamente social de suas tramas ― com destaque para os conflitos raciais.

No Brasil, a Companhia das Letras optou por publicar primeiramente aquele que é, pela ordem de lançamento, o quarto livro da série, mas que, cronologicamente, seria o primeiro: Revolução difícil (Hard revolution, 2004) conta a infância de Derek Strange e seus primeiros tempos como policial. A capa da edição brasileira diz muito sobre o teor do livro: trata-se da reprodução parcial da célebre foto tirada instantes após o assassinato de Martin Luther King. Isso porque a história se passa às vésperas do assassinato de King, e culmina nos grandes distúrbios que tomaram Washington após sua morte. Pode-se dizer que Pelecanos criou, de fato, um romance histórico com um enredo policial. Negro, crescido em uma Washington D. C. repartida pelo ódio racial, Derek Strange é um dos muitos jovens que ingressaram na força policial durante um esforço político para assimilar mais negros à corporação. De modo que jovem idealista enfrenta a reprovação de todos os lados: não é reconhecido como um igual nem pelos policiais brancos, nem pela população negra que despreza a polícia.

Em seguida, foi lançado no Brasil Preto no branco (Rigth as rain, 2001). Aqui, Derek Strange já é um homem maduro e ganha a vida como detetive particular. Envolve-se na investigação de um crime que, supostamente, teria sido motivado por ódio racial: um homem negro é morto a tiros por um policial branco. Ao contrário das histórias de detetive mais tradicionais, em que se investiga a autoria de um crime, desta vez sabemos desde o início quem atirou. Desta vez, a questão é saber quais foram as motivações do suposto assassino, e como a opinião pública reagirá ao crime.

Agora, chega às livrarias brasileiras No inferno (Hell to pay, 2002). A história inicia-se com duas investigações. Em uma delas, Derek Strange é contratado por um velho amigo para verificar o passado e os negócios de seu futuro genro. Enquanto isso, o parceiro de Strange, Terry Quinn, ajuda duas investigadoras a localizarem uma menina que fugiu de casa para se prostituir. Paralela às duas histórias, irrompe uma terceira: um menino conhecido dos detetives é brutalmente assassinado em um conflito de drogas. O garoto fazia parte do time de futebol americano do bairro treinado por Quinn e Strange.

Pelo número de personagens e pelas diferentes linhas do enredo, pode-se dizer que se trata de um romance mais complexo do que o comum do gênero. Mas não difícil: Pelecanos é habilidoso na manipulação de um grande número de personagens, e os apresenta sem pressa, enfatizando a rotina e as relações de amizade da comunidade. Os críticos aos romances de Pelecanos alegam que eles poderiam ser mais econômicos, principalmente nas descrições. Mas é precisamente a riqueza de detalhes e a valorização das relações entre personagens do mesmo bairro que fazem o interesse de seus livros. Afinal, é evidente que os conflitos se tornam mais dramáticos na medida em que o leitor está familiarizado com os personagens.

Também é interessante notar que, como o policial é um gênero bastante “maleável” (ou seja, aceita procedimentos, comentários ou descrições que, em outras situações, talvez fossem condenados como frívolos ou óbvios), há espaço para reflexões abertamente sociais:

Os liberais que viviam nos bairros ajardinados dos subúrbios colavam adesivos Por um Tibete Livre no pára-choque de seus carros, mas pelo visto não se preocupavam com o fato de que, aos poucos quilômetros da Casa Branca, crianças norte-americanas fadadas a morar em locais que eram um pesadelo viviam entre tiros e drogas, freqüentando escolas públicas sem a menor infra-estrutura. O país se indignava com os tiroteios nos colégios freqüentados pela população branca, mas moças e rapazes negros eram assassinados sem fanfarra todos os dias na capital.

Não à toa, um dos temas mais importantes do romance é a tênue fronteira entre a infância e a vida adulta, e as escolhas decorrentes dessa transição, dentre elas a de resistir ou entregar-se ao crime. De certo modo, parece não haver escolha:

(…) Pobreza é violência (…) E ela gera violência. Os garotos negros vêem os mesmos comerciais na televisão que os garotos brancos vêem nas suas belas casas. Crescem vendo todas aquelas coisas que tanto desejam. Mas como é que vão conseguir obter aquilo, me diga?

Mas há quem tome as decisões certas. Conforme nos é narrado em Revolução difícil, Derek Strange sabe por experiência própria que a escolha nem sempre é tão evidente, e tampouco definitiva. Por isso, assume um papel de conselheiro para os meninos que treina. Postura, aliás, que não faz de Strange um modelo de conduta: dentre suas fraquezas e pecados estão a dificuldade em aceitar um relacionamento estável e o gosto secreto por casas de massagem. Além disso, se as circunstâncias assim lhe permitirem, a vingança mais violenta será considerada seriamente como o único meio de se alcançar alguma justiça.

Apesar do tom de denúncia, considerações como as descritas acima não soam panfletárias. Porque Pelecanos sabe que, afinal de contas, está escrevendo um romance, não um ensaio sobre criminalidade ou injustiças sociais, e ganha o leitor investindo nos personagens. Alguns deles são bastante carismáticos, como a jovem prostituta que se vê atraída pela figura paterna de Terry Quinn, ou a detetive com quem Quinn se envolve afetivamente (as mulheres, sem dúvida, possuem papéis importantes nos romances de Pelecanos). Além, é claro, da dupla de detetives, calejados o suficiente para serem durões quando necessário, mas não cínicos a ponto de não se envolverem emocionalmente nas investigações. E há, claro, a violência: em No inferno, ainda que ela demore um pouco para surgir, irrompe de maneira brutal e irremediável.

Costuma-se dizer dos bons romances policiais que eles estão sempre tentando extrapolar as fronteiras do gênero, ao mesmo tempo em que precisam se manter dentro delas, para serem reconhecidos como tais. Um autor como George Pelecanos tem plena consciência dessa aparente contradição, e escolhe um caminho interessante: No inferno é um bom romance policial, bem acima da média (e de um sem número de livros que só fazem repetir exaustivamente as velhas fórmulas e clichês). E prova que, ainda que Dennis Lehane e Michael Connelly estejam exagerando em suas declarações sobre a importância do romance policial, eles talvez tenham, afinal, alguma razão.

No inferno
George Pelecanos
Trad.: Beth Vieira
Companhia das Letras
355 págs.
George Pelecanos
Nascido em Washington D. C. em 1957, George Pelecanos já foi cozinheiro, lavador de pratos e vendedor de sapatos, antes de se consolidar como um dos mais elogiados autores de romances policiais na atualidade. Além dos livros protagonizados por Derek Strange, Pelecanos é autor de uma série de sucesso estrelada pelo detetive de origem grega Nick Stefanos. O autor já assumiu em entrevistas que uma viagem que fez ao Brasil foi fundamental para que mudasse a orientação de seus romances, e passasse a explorar mais os temas sociais. Preto no branco (Right as Rain) deve ser adaptado para o cinema pelo diretor Curtis Hanson (de LA Confidential).
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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