Um passeio por bandas latinas

"Sobre literatura e história" é um livro relevante sobre a ficção produzida em espanhol e português na América Latina
Júlio Pimentel Pinto, autor de “Sobre literatura e história” Foto: Mauro Figa
01/03/2025

A relação entre História, com H maiúsculo, e ficção dá sempre pano para manga. Talvez se possa dizer que o gênero mais ambíguo (ou ambivalente), nesse sentido, seja o romance. E é dessa relação entre relatos e narrativas, históricos e/ou ficcionais, e da construção da experiência ao narrar (sem espelhamentos), que se ocupa Júlio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da USP, em Sobre literatura e história, cujo subtítulo é Como a ficção constrói a experiência.

A obra se compõe de doze textos, todos eles versões novas (aumentadas e/ou atualizadas) de artigos científicos ou capítulos de livros anteriormente publicados em prestigiosas revistas e editoras, num interstício que vai de 2005 a 2024. Na versão da Companhia das Letras, foram reorganizados, isto é, não aparecem em ordem cronológica, mas numa nova sequência que provavelmente levou em conta a proposição de um novo fio no novelo das discussões sobre a experiência que construídos ao ler ficção ou mesmo ao escrevê-la e publicá-la.

Sobre literatura e história está dividido em quatro partes (Teoria, Diálogos, Leituras e Mais teoria), além de uma Apresentação, que explica os objetivos do livro e sua afiliação aos estudos, principalmente, sobre Ricardo Piglia, que, aliás, é tema de vários ensaios.

Pelo fato de ser uma obra que provavelmente ampliará o alcance de textos antes divulgados em revistas e livros especializados, algumas decisões editoriais foram tomadas a fim de tornar a leitura mais fluida. Embora os ensaios reunidos tenham uma linguagem atraente, mérito da escrita do próprio autor, claro, ainda são ensaios acadêmicos, e exigem do leitor e da leitora a dedicação dos que pretendem estudar e refletir sobre o tema das (des)conexões entre literatura e história, na latino-américa. Também por reeditar textos, há repetições, especialmente de citações, aqui e ali, mas nada que atrapalhe o resultado do material. Outra decisão foi listar todas as notas ao final, e não no rodapé, sem o uso de parênteses com incontáveis sobrenomes de autores e autoras, tal como costumam ser produzidos os textos científicos que obedecem às normas técnicas brasileiras. Isso deixa cada ensaio mais saboreável, sem interrupções e digressões imediatas, a não ser que quem lê esteja disposto(a) a navegar de cá para lá, dos textos às páginas finais.

Chave de leitura
A primeira parte de Sobre literatura e história republica um grande ensaio, o mais teórico e introdutório, sobre as relações entre história e ficção, oferecendo uma chave de leitura para todo o livro e esclarecendo a perspectiva de Pimentel Pinto. A segunda parte, intitulada Diálogos, reúne quatro textos que fazem aproximações entre pares como Julio Cortázar e Edgar Allan Poe; o poeta brasileiro Sousândrade (Joaquim de Souza Andrade) e o cubano José Martí; aborda a literatura policial latino-americana, com autores como o próprio Ricardo Piglia; e cenas da literatura latino-americana na virada para o século 21. Note-se, então, o arco extenso do livro, que trata de obras e autores que atravessaram épocas, sem deixar jamais de lado o debate sobre a própria noção de América Latina, que também se valeu da literatura para vingar (ou reiterar a tentativa).

A terceira parte, Leituras, se dedica à obra de Piglia, mais uma vez, agora nos diários (quase?) autoficcionais de Emilio Renzi (alter ego de Piglia?). Em seguida, passa pela obra do brasileiro Milton Hatoum, pela do mexicano Octavio Paz (e controvérsias), volta a Piglia, terminando em Juan Carlos Onetti e Jorge Luis Borges. Desnecessário afirmar que o Brasil está plenamente integrado aí aos estudos latino-americanos, embora o debate sobre essa integração nunca cesse e nunca prescinda de novas articulações, inclusive literárias e editoriais.

O último texto, que consta da parte final do livro, discute “o diário como álbum”, aproximando Alba de Céspedes, apenas de saída, a Ricardo Piglia, novamente. Aliás, não passa despercebida a baixa frequência de mulheres entre as autoras (de literatura e teoria) das obras estudadas e mencionadas, o que torna Alba de Céspedes um pequeno e bom susto/alívio.

Sobre literatura e história é, antes de tudo, resultado do trabalho consistente e longevo do professor Júlio Pimentel Pinto, que há tempos se dedica às relações entre história e literatura de ficção, grande especialista que é na obra de latino-americanos, com especial atenção ao argentino Ricardo Piglia. Além disso, é um livro relevante, preocupado também com certa acessibilidade na linguagem, interessando a todas as pessoas dispostas a uma leitura informada e inteligente da literatura que produzimos em espanhol e em português, especialmente abaixo da linha do Equador.

Sobre literatura e história
Júlio Pimentel Pinto
Companhia das Letras
272 págs.
Júlio Pimentel Pinto
É professor do Departamento de História da USP, pesquisador e ficcionista. Entre outros, é autor de A pista e a razão: Uma história fragmentária da narrativa policial (e-galáxia, 2019).
Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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