Um país possível

Com um narrador otimista, "O fio condutor" apresenta a possibilidade da convivência harmônica na diversidade cultural, religiosa e racial brasileira
Francisco Azevedo, autor de “O fio condutor”
01/02/2024

A minha geração começou a gostar de literatura quando encontrou nos romances, contos, poemas e peças de teatro alguma forma de contestação. Esta podia ser estética, ideológica, formal ou estrutural. O importante é que os livros deviam ter algo a mais, alguma coisa que driblasse o passado, com suas ideias protocolares solidificadas por fórmulas repetitivas que revelavam acomodação e falta de criatividade. Queríamos sempre uma espécie de vanguarda.

O romantismo deixara como herança bons estudos da realidade brasileira, mas seus heróis desde o início mostravam-se demasiadamente previsíveis. Os movimentos posteriores assumiram maus ares cientificistas, com uma pretenciosa literatura capaz de comprovar verdades, assim como faziam os primeiros cientistas. Quando se ultrapassou o portal do século 20, já não se podia com o peso de um passado que ninguém era capaz de suportar. Mas há Machado de Assis, alguém sempre dizia. Sim, há Machado de Assis. Toda literatura ou qualquer que seja a cultura linguística tem o seu Machado de Assis. E de toda a nossa literatura anterior, apenas ele dava mostras de novidades a cada vez que se lia ou se relia um de seus livros. Machado foi capaz de provar teorias literárias, filosofias, teologias, naturezas humanas sobre as quais, talvez, jamais sequer chegou a refletir. Sem problemas, na seara literária na maioria das vezes não é necessário levar em conta a opinião do autor, basta ler o que ele escreveu.

Os modernistas não pretendiam e nem podiam desbancar Machado, ele era mais moderno do que todos, embora fosse um homem do século 19, um acadêmico, alguém conservador, como pessoa. Mas, continuando a marcha da história, percebeu-se que, dentro do modernismo, havia o modernismo do modernismo, isto é, um novo livro publicado sempre tentava dar um passo à frente ao que se tinha feito até então. E assim caminhava e ainda caminha a humanidade. No entanto…

No entanto, quando se chega ao século 21, pergunta-se: o que escrever depois de tanta teoria, de tantas histórias, de tantas tentativas de compreensão do mundo, de uma quantidade enorme de filosofias?

Várias propostas
O fio condutor, de Francisco Azevedo, é um romance que porta várias propostas. Se não questiona e não inova no gênero conhecido como romance, tenta representar o pensamento dos jovens. Estes sempre têm esperanças, acham que, no futuro, problemas que existem agora estarão solucionados. Ainda há aqueles que se engajam num movimento para a mudança. Embora o passado tenha revelado que a natureza humana é algo complicado, estes acreditam que serão capazes de operar uma mudança radical, de dar a volta por cima.

O romance aborda a história de duas famílias. Todas de origem humilde, descendentes, em sua maior parte, de negros escravizados trazidos do continente africano para servir de força de trabalho e, depois, quando não mais se mostraram necessários, abandonados à própria sorte.

As trajetórias de Caique e Inaiê, protagonistas da narrativa, vão se cruzar diversas vezes e acabarão por espelhar uma espécie de Brasil possível, capaz de ser recuperado e de ainda gerar frutos que germinarão diferentes daqueles cujos sabores atualmente nos amargam a boca. Pelo menos é o que se percebe na leitura do romance, trata-se de um narrador otimista.

Caíque é uma espécie de menino de rua que perdeu os pais num desabamento e não conseguiu permanecer na casa daqueles que o acolheram. Vaga pelas entranhas de um Rio de Janeiro que todos conhecemos, pratica pequenos furtos e dorme debaixo de marquises, até que, após roubar um gorro pleno de notas de dinheiro, escapa e conhece alguém que vai mudar-lhe a vida.

Inaiê é uma menina que sai de casa cedo, mora com a avó em Olaria, trabalha num supermercado e se apresenta pela cidade como cantora de rua, até que sua estrela brilha e a moça progride.

O autor, ao modo iluminista, consegue conjugar literatura e música como possibilidades de despertar a curiosidade nos seres humanos e de elevá-los a um patamar superior de esclarecimento, o que poderá torná-los melhores em termos de cidadãos.

O início do romance já nos apresenta uma via de valorização das origens brasileiras:

No sangue e na pele, é indígena, branca e negra — mistura de tons nascida por predestinada ordem de entrada em minha paleta. Orgulha-se de ter a cor indistinta, a fibra das três raças, as marcas dos antepassados — todos inoculados em sua alma, para o bem e para o mal. Dezesseis anos, se tanto.

Trata-se de uma jovem, trata-se de um país também jovem.

Não se pode dizer que o autor escreve uma literatura étnica, como é muito comum hoje, mas seu romance herda a ideologia de mistura racial brasileira, a mestiçagem, onde todos poderiam conviver de modo harmônico e teriam o seu lugar. Há ainda a presença do imigrante, na pele de Faruk, um libanês proprietário de uma livraria-sebo na rua da Carioca. Este homem viria completar o caldo cultural do nosso país.

O autor consegue conjugar forma e conteúdo, fazendo avançar a narrativa, despertando a atenção e o interesse do leitor. Este, caso seja um leitor experimentado, perceberá que muitas das questões colocadas pelo romance já foram discutidas em obras de outros autores, mas isso não as invalida, sobretudo num momento histórico em que vivemos, considerado pelos estudiosos como pós-utópico.

Estamos sempre procurando por nossas raízes, e Azevedo vai em busca delas. Ainda que se trate de um pequeno ladrão, cuja parcela não tão pequena da população optaria pelo extermínio do pobre coitado (“assim, no futuro, evita-se um verdadeiro marginal”), o autor, tendo como base a família e a pequena chama que cada um traz dentro de si nomeada por ele como Algo Maior, está aberto a dar mais uma chance ao ser humano.

Todo livro, caso observado atentamente, traz algo de novo. No caso de O fio condutor, o novo está no narrador. Por suas características, não poderia deixar de ser chamado de um narrador otimista. O leitor há de conferir.

No final (não o estou revelando, não), há uma espécie de comunhão entre as regiões brasileiras e uma crítica sutil àqueles que semeiam a divisão do Brasil em vários países, como foi o caso dos falsos profetas, partidários do ex-presidente derrotado nas últimas eleições.

O romance de Francisco Azevedo vem para mostrar o contrário. Talvez aqui esteja a contestação que sempre procuramos na literatura. Além da inovação com um narrador inesperado e talvez jamais utilizado por outro autor, a assertiva de que a diversidade cultural, religiosa e racial (com a mesma oportunidade para todos) é possível, sem necessidade de nos isolarmos em comunidades étnicas.

O fio condutor
Francisco Azevedo
LeYa
415 págs.
Francisco Azevedo
Romancista, roteirista, dramaturgo, poeta e ex-diplomata, Francisco Azevedo começou a se dedicar à literatura em 1967, quando venceu o concurso promovido pela OEA (Organização dos Estados Americanos). É autor de O arroz de palma, finalista do prêmio São Paulo de Literatura, Doce Gabito, Os novos moradores, A roupa do corpo, Eu sou eles.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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