Da quarta capa de Nhô Guimarães: romance-homenagem a Guimarães Rosa consta este meu comentário: “Aleilton Fonseca […] cria uma narradora sertaneja que integra inteiramente o universo rosiano. A linguagem é bem trabalhada, com momentos de muita poesia, com vários achados. O texto vai se tecendo com um acúmulo de saborosos causos”. Paródia reverencial, o romance do baiano Aleilton Fonseca reedita, com muitos recursos, o regionalismo do autor do Grande sertão: veredas. Nos relatos do livro, com efeito, como bem observou Antônio Torres, “paira a figura” de Guimarães Rosa. E ela paira notadamente no ângulo (agudo) adotado ao registrar cenas e certos temas típicos — e tudo numa linguagem bem tecida, exata, que, como indica ainda o autor de Essa terra, evita “cacoetes e excessos”.
Em entrevista ao escritor Lima Trindade, após a publicação do romance, Aleilton Fonseca esclarece: “Um certo dia tive um estalo: ‘Guimarães Rosa andava pelos gerais, de caderno em punho, conversando com o povo e anotando tudo. Ele dialogou com muita gente que acabou inspirando personagens de sua ficção. E se, de repente, uma personagem rosiana narrasse suas passagens pelo sertão?’. Daí, peguei a imaginar como seria essa prosa. Surgiu-me a idéia de criar uma narradora de feição bem rosiana, uma sertaneja experiente e vivida, que assumisse a palavra”. Instigante intertexto, a razão de ser do romance parece ser mesmo, como revelou o próprio Aleilton em outro instante, o trânsito ou “travessia” de significados e linguagem.
Três aspectos chamam a atenção no romance do autor baiano: a narradora (e, por extensão, o seu interlocutor), o personagem Nhô Guimarães e as referências metalingüísticas.
Nhô Guimarães é narrado por uma octogenária viúva, que vive sozinha num pé de serra. O marido, o baiano Manuel Adeodato, o Manu, foi muito amigo e confidente de Nhô Guimarães (alter ego de Guimarães Rosa). A viúva narra, como no Grande sertão: veredas e no conto Meu tio o Iauaretê, para um interlocutor silenciado, sumido. Trata-se de uma sertaneja de fala incisiva, incessante, que conta seus causos e crenças, cultiva a memória do marido (“Guardei sua imagem: um homem vivo, trabalhador e companheiro”), carrega a dor pelo filho desaparecido e, reiteradamente, comenta a grande amizade de Nhô Guimarães. A força dessa narradora, elaborada à maneira do camponês sedentário benjaminiano, reside no registro e/ou transmissão de sua experiência. Sua energia e determinação (“Hoje eu mando em tudo, estou sobre mim, no meu direito”) lembram às de algumas das figuras femininas que aparecem em seus relatos, como Chica Homem (mulher valente, destemida, domadora de animais: “Aos muito brabos domava o rompante dos gestos bruscos, pondo os bichos nas rédeas certas de obedecer e servir”) e Tiana (que descobriu em si “dons curativos”; seu método de curar — homens, sempre eles — terá supostamente aprendido estudando os exercícios do Kama Sutra: “Tiana, com suas mãos de fada, passava ao corpo dos homens os seus calores, os bons remédios das carícias fêmeas. Nesses modos de tratar os desejos, o corpo e a alma dos pacientes se elevavam”). A narradora, uma “velha aprumada”, que ainda planta, colhe e cria e que “vive em paz”, em seu “sossego”, tem certa instrução: “Todo dia, bem cedinho, eu caminhava até a escola da vila. Estudava com dona Arlinda, professora sem diploma, mas muito excelente para os daqui”. É aposentada: “O valor [da aposentadoria] é uma sem-vergonhice de tão pouco…”. E de fé: “Sou católica, e, mais que isso, tenho também outras crenças, como o povo todo do sertão”.
Sertão globalizado
Vale registrar a visão de sertão que o romance de Aleilton apresenta, revelada na própria fala da narradora. Com efeito, em certo momento pelo menos, a fala da velha viúva remete a algumas representações que se fazem contemporaneamente do sertão, ou seja, um sertão modificado, mais aberto ao mundo, onde se projetam, cada vez mais, elementos da cultura urbana globalizada; um sertão tecnologizado, antenado (parabolicamente) com vários problemas e/ou situações do país e do mundo. A narradora diferencia claramente o sertão do passado (“o tempo de homens brabos, esse já passou, agora é tempo de acertos, pelo melhor considerar de todos. Porque antes havia chefe de mando, com seus capangas, suas brabezas”) do sertão do presente (“…o mundo já deu muitas voltas. O sertão vai junto, demudando os seus velhos tratos. […] Essa terra precisa de olhos novos, de gente sabida, sem medo de mudar as coisas, alargar os horizontes. […] Ninguém vive mal por gosto […]. É preciso abrir os caminhos, deixar o povo seguir as trilhas, derrubar as cercas, abrir as porteiras, repartir a terra”). Enfim, para a velha narradora, admiradora de Antônio Conselheiro, o sertão deve ser “de todos”.
E aquele que, paciente, ouve a fala ininterrupta, às vezes nervosa, da narradora? Para a velha viúva, o seu interlocutor, além de algumas qualidades, passa calor humano: “O senhor fica assim calado, mas seus olhos conversam muito. […] Gostei de seus modos calmos, sua paciência de me ouvir, esses agrados que vêm de seus olhos. O senhor é fino, quieto, atencioso”. O calor humano, ao final, cria mesmo uma suspeita — a de que o moço diante dela pode ser o sonhado neto, filho do filho desaparecido (ela tem sonhos com um menino, cuja figura não sabe distinguir direito): “…o senhor tem o sinal de minha gente. Agora junto os demais: seu olhar, seus gestos, seu modo de sorrir, seu sentimento”.
Por outro lado, a figura quase lendária de Nhô Guimarães, permanentemente associada à imagem do marido Manu (“sabiam ser bons amigos”), de quem a narradora sente muita saudade, é sempre recordada com reverência, como se presente estivesse: “Eu vi, vivi, convivi. Para mim está muito bem vivo”. O personagem Nhô Guimarães, repita-se, é alter ego de Guimarães Rosa, sendo que alguns dados da biografia deste último são sempre postos em cena pela narradora (Aleilton Fonseca, na citada entrevista a Lima Trindade, afirma: “Procurei inserir os dados históricos no ficcional, como se também fossem — e agora são! — uma ficção”; afirma ainda: “A realidade é apenas um marco de referência que garante a verossimilhança”). Dois desses dados, pela sua importância, chamam muito a atenção: o primeiro é aquele que alude à famosa viagem pelo sertão, em 1952, na qual Guimarães Rosa, acompanhado do vaqueiro Manuel Narde, o Manuelzão, anotou muito sobre a fauna, a flora, a fala e as fabulações sertanejas, material que será aproveitado na composição do Grande sertão: veredas. A viagem é assim referida no romance:
Ele fez uma travessia longa, de muita importância para seus escritos. Se aventurou nas poeiras, passagens das mais supimpas, com os demais. […] No terreiro todo aí fora se arrancharam para o descanso e o de-comer, os animais espalhados convivendo amigos. […] Nhô Guimarães por tudo a saber e anotar, no sempre, os seus riscos e debuxos no papel. Os aconteceres do mais sertão, lhe dissessem de tudo. […] Nhô Manuelzão era quem mais sabia ensinar, sempre bom de prosa e de aventura. Os demais, estes cismavam: onde já se viu boiadeiro assim fanfando, todo lorde, bem do seu, de finos óculos? Essa viagem era para retratos e anotações […], para estampar a travessia em papel, para outra gente saber de tudo e conhecer as aventuras de Nhô Guimarães pelos Gerais.
O outro dado biográfico de Rosa no romance (o autor de Sagarana, sabemos, entrou em 16 de novembro de 1967 para a Academia Brasileira de Letras e, três dias após a sua posse, faleceu de enfarte) está na cena em que Nhô Guimarães informa a Manu acerca de um convite que recebera (“Era sobre sua entrada nas honras de uma famosa casa, lá pras bandas da cidade grande…”). Vale a pena reproduzir o diálogo em que aparece um Rosa titubeante, supersticioso, e um interlocutor desencorajador:
— Nhô não devia de entrar, acho, sei não…
— Mas por quê? — Nhô indagava.
— Conforme Nhô mesmo disse, já tentou uma vez, não foi servido.
— Todos da casa agora desejam que eu entre — ele explicava.
Então, Manu cismou um pouco, e prosseguiu:
— Isto é, o senhor, homem daqui, é pessoa verdadeira.
— O que me apalavra a respeito, em dizeres seguros?
— Nhô, nada não. Isso de o senhor narrar mais certo o que a gente convive, com seu modo de apalavrar, isso é um dom.
— Se entro, perco o dom? Ou será que morro?
— Não sei. Aliás, medite uns anos bastantemente. Às vezes, é depois de uma festa que sobrevém o luto. Todos têm sua hora e vez.
A famosa frase de Rosa (“As pessoas não morrem, ficam encantadas.”) em seu discurso da ABL é reeditada por Manu:
— Então, será que morro?
— Nhô Guimarães, um homem de seu quilate não morre…
Ele reagiu suspirando fundo, enquanto Manu inteirava os termos:
— Fica encantado!