Um mundo bem melhor

“As cariocas”, de Sérgio Porto, é um retrato de tempos menos inóspitos no Rio de Janeiro
Sérgio Porto: olhar aguçado sobre a sociedade brasileira.
01/04/2007

Houve um tempo em que o Rio de Janeiro simbolizava tudo o que podia haver de bom no Brasil. O Rio era a terra das belas mulheres, da vida agradável, de inigualável beleza com uma combinação perfeita entre praia e mar, onde se fazia música, arte e, principalmente, vida. Mas a Capital Federal se tornou Brasília, escondida lá no meio do Brasil para deixar os políticos bem longe do povo para que roubem à vontade, e o Rio foi perdendo o seu charme. E a partir de Leonel Brizola (ele inclusive), todo político conseguiu fazer alguma barbaridade para deixar o Rio ainda mais feio, culminando com o ápice da incompetência representado pelo casal Garotinho.

Dia desses passou um filme no Canal Brasil de uma época em que o Rio de Janeiro ainda era lindo, a Carla Camurati era uma gostosinha, o Alexandre Frota já era um canastrão, mas parecia ter um futuro como canastrão, o José Lewgoy era magro, a Zezé Macedo já fazia o papel de uma velhinha safada, mas ela não era tão velhinha, da galera indo para a praia paquerar, saindo na noite sem medo de bala perdida. O filme se chama Os bons tempos voltaram, vamos gozar outra vez, uma chanchada divertida (desde que se entre no clima da chanchada).

Foi uma coincidência ter achado o filme. Havia acabado de ler As cariocas, de Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta, você escolhe), e estava refletindo sobre os bons tempos do Rio. O filme só confirmou tudo o que se percebe com a leitura de As cariocas. O Brasil inteiro perdeu uma das melhores coisas que possuía, que era o Rio e sua cultura. Todos nós deixamos que uma súcia de bandidos tomasse conta do Rio e o depredasse e o dilapidasse.

O livro é uma coletânea de seis histórias de personagens típicas do Rio daquela época. Pelas palavras de Sérgio Porto, somos apresentados à Grã-fina de Copacabana, à Donzela da televisão, à Currada de Madureira, à Noiva do Catete, à Desquitada da Tijuca e à Desinibida do Grajaú. A nostalgia é em parte reduzida quando vemos que as contradições tão fortes do Rio — ricos e pobres, Zona Sul e Zona Norte, centro e subúrbio, favela e Copacabana Palace, tudo no mesmo lugar, vizinhos uns dos outros — já eram presentes, ainda que não com a selvageria indiscriminada de hoje.

Cada episódio é uma história completa, fechada em si, que teoricamente não tem ligação com a outra. A veia narrativa de Porto, no entanto, dá ao livro uma unidade que o torna um trabalho completo. Eles se entrelaçam não pela temática ou pelo espaço que ocupam, mas na maneira que o autor encontra para mostrar que cada pedaço é parte indissolúvel de um grande retrato, e que sem este pedaço o retrato estaria incompleto.

Vejamos o caso de A grã-fina de Copacabana. Porto nos apresenta a uma grã-fina que espera seu amante na garçonière deste, um médico famoso e bem-sucedido do Rio. Nostalgia: houve um tempo em que os homens bem-sucedidos tinham garçonières, tinham amantes, tinham dinheiro de sobra para isto (atenção às feministas e moralistas de plantão. Não é condenação ou exaltação, mas apenas constatação). Esta mulher, que espera o seu amante debruçada na janela, o vê chegar de carro com a esposa oficial. Ela fica enciumada, e exige do amante que este compre um carro esporte igual ao da oficial. Ela é amante do médico porque este é rico (é claro, as únicas razões para se trair o marido ou mulher são ou encontrar um parceiro mais rico ou que transe melhor), e por isso pede o mimo. Começa aí o jogo da dissimulação, da falta de vergonha explícita de uma classe que não se importa com os sentimentos, mas sim com as aparências. Sérgio Porto é ótimo ao não dar um final óbvio para o conto, deixando-o em aberto até as últimas linhas.

A contrapartida dá-se em A desquitada da Tijuca. Ali, vemos uma mulher que é obrigada a inventar um amante — rico — para impedir que toda espécie de homem tente se aproveitar de seu estado civil, o de desquitada. Porto nos conta como era difícil a vida de uma mulher que se separou do marido e vivia em uma sociedade machista, cheia de preconceitos. (Bom, dependendo da situação, nada mudou). A desquitada da Tijuca passa a ser vista pelos homens como uma mulher fácil, que logo logo dará para o primeiro que passar uma boa cantada, afinal, ela já foi casada e deve estar louca para dar uma sem compromisso. Infelizmente para os homens, ela não quer nada disso, quer é viver em paz, sozinha com sua desilusão em relação aos homens. Porto consegue relatar como se pode arranjar uma maneira carioca de contornar a situação para evitar maiores embaraços.

Trama deliciosa
Um bom contraponto a ambas as mulheres pode ser visto em A donzela da televisão. Neste conto, uma jovem garota é acompanhada de perto pela mãe em sua tentativa de virar uma estrela da televisão. Claro que a mãe está superinteressada em conseguir tudo o que pode do sucesso da sua filha, e não hesita em empurrá-la para os olhos gulosos de um diretor da televisão. Este, ao ver um “broto” (esta é a palavra correta) dando sopa, tenta ao máximo não se ver envolvido em uma trama que é por demais óbvia. Novamente, o imprevisto aparece e o que parecia um conto tradicional se torna uma trama deliciosa, onde todos tentam tirar vantagem de tudo e de todos. Claro, é mau-caratismo, mas parece algo natural ao ser humano, da maneira como Sérgio Porto narra. Este conto iria para o cinema em 1970, com o delicioso título de Em busca do susexo.

Talvez como um aviso ao que viria, Porto nos traz uma história trágica, A currada de Madureira. Neste conto, já vemos a truculência dos bicheiros e da polícia, para quem a vida de ninguém importava mais que dois tostões. Mata-se e manda-se matar como quem vai à farmácia comprar um remédio para dor de cabeça. Não há escrúpulos, mas até parece que vemos certa graça no fato de os bandidos serem no máximo cachaceiros, pois não há drogas envolvidas. É uma tragédia brutal, mas parece que ela era ainda café pequeno. Parece não, é, quando comparamos à tragédia descomunal que vemos no Rio de hoje, com traficantes, milícias, policiais e políticos em uma mistura que fica difícil distinguir uns dos outros. E tudo com uma enorme parcela da população que tem como única atitude pedir a paz, para que possa ir até o pé dos morros comprar suas trouxinhas de qualquer droga sem medo de levar uma bala perdida. Tristes trópicos…

Por fim, temos A noiva do Catete e A desinibida do Grajaú. Duas mulheres de comportamento diferentes, mas que se completam. Enquanto uma parece safada, mas não é, a outra parece santa, mas também não o é. Vê-se que há uma certa tensão sensual no ar (não é sexual, falta o explícito mas sobra o implícito, o que é muito melhor) no comportamento das duas, ainda que seja a noivinha aquela que dá lições de moral, sem ter nenhuma para si própria. Em ambos os casos, temos sim um retrato de uma época que não volta mais, pois seria difícil imaginar uma desinibida que causasse tanto furor no bairro como a Desinibida do Grajaú, ou não encontrarmos uma noiva que age exatamente como a do Catete retratada por Porto. Sabemos que se tratam de épocas diferentes, mas parece que estes dois contos ficaram realmente datados, ainda que continuem deliciosos.

Em 1966, três contos de As cariocas ganhariam as telonas do cinema. Fernando de Barros recriou A grã-fina de Copacabana, Walter Hugo Khouri filmou as aventuras de A noiva do Catete e Roberto Santos se inspiraria no conto A desinibida do Grajaú para dar a sua contribuição. O filme bebeu das fontes da crônica urbana de Porto para recriar nas telas o espírito das mulheres que povoavam aquele Rio.

Para quem só conhece a veia irônica e humorística de Stanislaw Ponte Preta, As cariocas soará um tanto quando estranho. Nele, o humor não é explícito, ou melhor, ele não aparece. Sobra ironia, mas esta vem da realidade do cotidiano, não é inventada nem forçada em situação alguma. Sérgio Porto quer, e consegue, ser o cronista da vida diária, o autor que transforma pessoas e situações comuns e corriqueiras em literatura de alta qualidade, que ultrapassa as fronteiras do tempo. E com o livro é realidade, só temos que lamentar o quanto tudo mudou para pior.

As cariocas
Sérgio Porto
Agir
164 págs.
FEBEAPÁ 1, 2 e 3
Stanislaw Ponte Preta
Agir
398 págs.
Tia Zulmira e eu
Stanislaw Ponte Preta
Agir
219 págs.
Sérgio Porto
Nasceu no Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 1923. Segundo o seu Auto-retrato do artista quando não tão jovem, ele foi jornalista, radialista, televisista, teatrólogo, humorista, publicista e bancário. Segundo os críticos, sua obra a respeito dos cariocas e de seu modo de vida é até hoje insuperável. Sérgio Porto conseguiu transpor para jornais, livros e revistas o modo coloquial de ser do carioca. Como Stanislaw Ponte Preta, apelido emprestado de Oswald de Andrade, Porto criou o seu Festival de Besteira que Assola o País, o FEBEAPÁ, em que ele desnudava a quantidade de absurdos que acontecia em um país recém-lançado à ditadura. Como Stanislaw Ponte Preta, lançou nove livros: Tia Zulmira e eu (1961), Primo Altamirando e elas (1962), Rosamundo e os outros (1963), Garoto linha dura (1964), FEBEAPÁ1 (Primeiro festival de besteira que assola o país) (1966), FEBEAPÁ2 (1967), Na terra do crioulo doido (1968), FEBEAPÁ3 (1968) e A máquina de fazer doido (1968). Como Sérgio Porto, sua obra é menos humorística e mais lírica, sem perder a qualidade. Além de As cariocas, há também A casa demolida (1963). Morreu em 1968, deixando incompleto o romance O transplante.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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