“Quem foi Karl Marx?”, pergunta Audino Vilão, em seu vídeo Traduzindo Karl Marx para gírias paulistas, e logo responde: “Foi um veinho barbudão, gordinho, que falou assim: ‘É tudo nosso e o que não for, a gente toma’”. Audino é pseudônimo de Marcelo Marques, um universitário que cursa Licenciatura em História e faz vídeos de filosofia no YouTube. A proposta do apresentador é traduzir conceitos filosóficos para uma linguagem coloquial, repleta de gírias das periferias de São Paulo.
De maneira simplificada, o vídeo continua assim: ele apresenta o papel do proletariado, responsável por “produzir a camiseta, o pisante, a bombeta”, mostra o que são os meios de produção, como a firma ou o iFood, e explica o ideal marxista: “A fábrica tem que ser da quebrada, coletivizar o negócio. Sem playboy. Tomar não é chegar no mano com a peça e tomar. É sem atrasar o lado de ninguém. É chegar no playboy que paga de mala porque o pai é o dono da empresa e tomar esse equipamento, o torno, a máquina de solda, por exemplo, porque a gente vai fazer as nossas moedinhas”.
Em sua proposta de explicar filosofia e sociologia, Audino não está sozinho. Outros perfis apresentam propostas parecidas, como o canal Chavoso da USP, organizado por Thiago Torres, ou o perfil Funkeiros Cults, de Dayrel Azevedo, que ganhou um dos prêmios de Influenciador Literário do Ano no Prêmio Machado Darkside. Os supridores, primeira narrativa de fôlego do escritor José Falero, não tem a mesma intenção, mas, ainda que não queira ensinar marxismo, é mais ou menos isso que Pedro, o protagonista, faz ao seu fiel companheiro Marques.
No romance, acompanhamos Pedro e Marques, dois amigos que trabalham como supridores (repositores ou estoquistas, a depender da região) na rede de supermercados Fênix. Eles moram na periferia de Porto Alegre e estão cansados da vida de pobreza que levam. Marques, por exemplo, é pai de uma criança de três anos e descobre que sua companheira está grávida novamente. Ter a casa cheia de crianças não seria um problema para ele, mas a condição econômica em que vive faz com que haja pouco espaço para o amor paterno. O que florescem são a rispidez, violência e preocupação.
Pedro está igualmente cansado. Sem dinheiro nem para consertar uma maçaneta, a esperança — cega e infundada — de dias melhores, que sua mãe insiste em repetir, causa profundo desânimo. Isso porque Pedro é um cara que pegou prazer pela leitura. Entre as longas viagens que faz, apertado no ônibus que o leva ao trabalho, leu uma coisa ou outra sobre teoria marxista. Ele sabe que o sistema não vai melhorar se eles continuarem resignados. Seu discurso é politizado, mas ele também está ansioso para colocar a teoria em prática e sair dessa situação.
Em um dos seus falatórios frequentes, Pedro explica ao amigo a maneira que entende o status quo e a exploração do trabalho. O exemplo é simples: a limitação humana. Em seu diálogo, Pedro diz que:
As pessoa tudo gosta de esquecer que o ser humano é limitado, porque essa limitação, que é um fato fácil de demonstrar, ela é a prova de que tem gente com grana demais por aí. Tendeu? Tem gente que é dona de coisa demais, quando tu é dono de coisa demais, sem ter feito por merecer tudo o que tem, isso significa que os nego que fizero por merecer tão a ver navio, por culpa tua.
A partir daí, ele compara a riqueza produzida por uma pessoa que vende camisetas com o salário do dono da rede de supermercados. Pedro diz que, se você faz uma camiseta, é justo que o lucro seja seu, já que trabalhou sozinho. No entanto, é impossível que um homem só tenha construído uma rede de supermercados. Pedro abre os olhos do amigo para a exploração da mão de obra e em como a noção de trabalho e de dinheiro se afastaram:
Mas aí eu te pergunto: quantas camisa uma pessoa precisa fazer por dia pra ter um padrão de vida igual ao padrão de vida do dono desta porra desta rede de supermercado, por exemplo? Hem? Já pensou nisso? Quantas malditas camisa, Marques? Qual é a quantidade de trabalho necessária para uma pessoa merecer um padrão de vida que nem o dele? Pensa bem, cupincha. Tenta calcular. (…) Esse cara ganha, num só mês, mais do que todo o dinheiro que já passou na tua mão em toda a tua vida! E cumé que isso é possível, Marques? Será que ele é o Super-Homem?
Com o arcabouço teórico e o ímpeto de agir, Pedro resolve que vai sair da pobreza rumo a uma vida confortável e, para isso, precisa da ajuda de Marques. O plano é vender maconha, já que o tráfico resolveu lucrar com o crack e a cocaína. A divisão dos lucros, obviamente, é igualitária. Marques logo topa o plano e a dupla procura sua trupe, agora composta por seis companheiros, que começa a construir sua independência financeira.
Ritmo e consequência
Próximo dos malandros brasileiros e do romance picaresco, onde um personagem da classe oprimida consegue manipular e sobreviver no mundo graças a sua astúcia e suas mentiras, Pedro dribla a manutenção do capitalismo e conquista a vida almejada, tanto para ele quanto para os amigos.
No entanto, Os supridores não deixa de ser uma tragédia. Pedro tem a húbris do herói grego disposto a desafiar a ordem dos deuses. Seu orgulho e confiança não o impedem de investir contra a entidade sagrada de nossa sociedade, o capital, nem de se contaminar por uma certa ganância e desejo de consumo.
Nesse quesito, Falero foi mestre em estabelecer ritmo na narrativa. Ficamos presos até o último momento, ansiosos para o desfecho que deve vir, o desastre que se alimenta da violência iminente e espreita em cada esquina e viela. Por isso, apesar de Pedro saber contornar os problemas e resolver os problemas dos colegas, ele não sai impune das escolhas que fez.
Entre vielas e gôndolas
Falero faz muitos acertos em seu romance de estreia. Além da construção do ritmo, é certeira a mão que nos guia pela narrativa. Em Os supridores, não há uma glamorização do tráfico, da pobreza. São escolhas pragmáticas e necessárias, sem a moralização, a estereotipação ou o apelo estético da violência tão comuns em narrativas desse gênero.
Talvez, nenhum desses pontos fossem relevantes na discussão sobre a obra caso não tivéssemos um círculo literário fechado, elitista. O que ganha força é a verossimilhança da vida de um escritor que já foi, sim, um supridor que conversava sobre marxismo com seus colegas.
Como disse Xico Sá em seu Twitter, Falero descreve um tiroteio como poucos, sabe e consegue escrever sobre a realidade da vida periférica. Vivências assim são necessárias para não nos acostumarmos com o ponto de vista padrão do nosso mercado. Já é conhecido o estudo de Regina Dalcastagnè sobre os personagens e autores da literatura brasileira, mas ainda ressoa forte a reflexão que faz sobre o paralelo entre a vida de uma pessoa pobre como uma pessoa “simples”, como se fosse pouco complexa ou uma pessoa rasa.
Por isso, em Os supridores vemos a dificuldade da expressão de sentimentos entre os homens do grupo, os conflitos que envolvem a criação de um lar afetuoso e a própria complexidade em um personagem como Pedro: ambíguo, o grande confronto que enfrenta diariamente é o descompasso entre sua ideologia e as suas vontades materiais. Ainda que alinhado com o pensamento marxista, não deixa de ter vontade de fazer parte de uma sociedade de consumo, de ter dinheiro.
Esse desequilíbrio surge, também, na relação do narrador com a trama. Alcir Pécora, em resenha para a Folha de S. Paulo, e Luís Augusto Fischer, na live de lançamento do livro no canal da Todavia, comentam sobre o tom machadiano que vem das diferenças entre o protagonista e o narrador: são duas inteligências que atuam de forma diferente e em tempos diferentes.
O fato de lermos hoje José Falero em uma grande editora não nega que diversas vozes periféricas continuam isoladas, que a literatura marginal (cujo próprio termo problemático já nasce a partir de um centro pré-determinado) só se faz presente quando é interesse da elite. Mas é, sim, um respiro. Uma esperança de que diversas experiências e vozes que conquistaram seu espaço nos últimos anos ainda podem sobreviver em meio às diversas tentativas de silenciamento que estão ressurgindo.