A literatura é um espaço de possibilidades que parte de ideias que consideramos ilógicas. Nessas contrariedades surgem versos, narrativas, personagens e cenários que se tornam parte do imaginário dos leitores. Também é uma visitação ao imaginário de outros indivíduos. É por essa e outras características que ela é insubstituível, como diz Italo Calvino, ao permitir a modificação da maneira de ver o próximo e a si mesmo e por ser uma experiência de deslocamento e conhecimento. Nós, leitores, visitamos as mais diferentes fontes de inspiração, formas de narrar o mundo, de elaborar criaturas e imagens que nos permitem a viagem a um universo muitas vezes diferente do nosso. É esse o ponto fundamental do livro O terrorista elegante e outras histórias, de José Eduardo Agualusa e Mia Couto.
A obra é composta por três narrativas curtas e uma entrevista com os autores, além das ilustrações de Alex Cerveny. O terrorista elegante, Chovem amores na rua do matador e Caixa preta são histórias construídas a partir da realidade violenta que se ergue sobre o mundo, dominando-o e condicionando os sonhos de homens e mulheres do nosso tempo, e também sobre o amor e suas diversas formas e expressões. A obra é resultado de uma proposta de parceria dos autores e as novelas já haviam sido escritas para o teatro. São, portanto, textos que resultam de uma convivência intelectual e da amizade. E, segundos os autores, o livro contraria a ideia de que a criação literária é um ato solitário.
Narrativas
Charles Poitier Bentinho é a personagem que conduz a narrativa O terrorista elegante. O homem negro é preso no aeroporto de Lisboa, acusado de um provável ato terrorista simultâneo aos que estavam acontecendo por toda a Europa. “O poeta romântico e mestre em espíritos” era angolano e tinha sido combatente na Síria, defendendo o estado Islâmico. Racismo, machismo, histórias escondidas e sentimentos guardados por muitos anos vão se manifestando nas ações das personagens que transitam no ambiente da prisão. Lourenço Laranjeira, o comissário de polícia; Lara, a investigadora; e Maggie, a agente americana que vem pedir a custódia do preso, formam as vozes que dialogam com Bentinho. Um homem que mistura a mística capacidade de modificar a vida das pessoas, consegue se comunicar com os pássaros e ler os corações nos seus mais secretos sentimentos e lembranças. E é o amor que o condena à prisão, mais do que qualquer outro crime. A liberdade é, para ele, a segurança de Faíza al Garbh, irmã do dirigente do Estado Islâmico, mulher por quem ele havia se apaixonado.
Em Chovem amores na rua do matador temos a história de Baltazar Fortuna, um homem de quarenta e nove anos que resolve matar as ex-amantes, “tomado por raivas antigas” que acabaram por lhe misturar os pensamentos. A narrativa se apresenta na forma de interlocução entre Baltazar e Mariana Chubichuba, Judite Malimali e Ermelinda Feitinha. Todas as sentenciadas tinham rancores do Baltazar, que havia voltado para a cidade de Xigovia para cobrar contas e apagar os amores que lhe pesavam. Apesar do nome de sorte, Baltazar era um grande azarado e que só causava desgostos nas mulheres, além de ser um falante muito atrapalhado nas categorias gramaticais. Seu maior desejo era ser nome de rua, o que acaba por acontecer, a pedido das amantes que, na solicitação ao secretário do município, justificaram por ser uma “eterna lembrança”. Baltazar duplica-se e morre pela segunda vez nos braços da filha de Emerlinda, que seu duplo não reconhece. Amor, poesia e morte se misturam na história de Baltazar, que não viu nada além da sua própria imagem refletida na vaidade que ostentava.
A caixa preta é a última narrativa da tríade. Uma história de revés inesperado em que memória, dor e a guerra formam o tecido vital das personagens. Velha Luzinha e Vitória vivem numa cidade em que a violência domina as ruas. Um ladrão surge na noite, espreita a moça que dorme sem saber o que se passa a sua volta. O Lobo Mau traz sob a máscara animalesca a verdadeira história de um amor, separado pela guerra e pela morte. Um homem que se transforma em árvore, uma mãe que não suportou a dor de perder o pai da única filha e uma menina que descobre sua própria história nas páginas do diário materno, repleto de lembranças, sonhos e desejos. Toda a miséria e as perdas causadas pela guerra assumem a forma do pai e da mãe de Vitória.
Espaço de possibilidades
A graça que o mundo tem, entrevista realizada pela jornalista Anabela Mota Ribeiro com José Eduardo Agualusa e Mia Couto para o jornal português Público, fecha o livro. Independentemente do que foi construído nas narrativas, Agualusa e Mia Couto trazem a memória de um passado, de África, entre Moçambique e Angola, onde nasceram e que são as fontes de seus imaginários pessoais.
Nas narrativas, escritas a quatro mãos, histórias, imagens, vozes e uma vasta diversidade de cores, cheiros e memórias se misturam, dão vida a uma terceira memória, híbrida. Nas suas palavras, registram-se o conhecimento da guerra, das diferenças raciais, de um Portugal que não é o dos sonhos e de uma África que lutava por sua independência e uma identidade descolonizada.
Por ser um espaço de possibilidades, a literatura permite o alinhamento da poeticidade de Mia Couto e da ironia de Agualusa ao moldarem suas personagens. Bentinho, Baltazar e suas mulheres, Velha Luzinha e Vitória, o som dos tiros, o terrorismo, a esperança do amor, o medo da morte, tudo está nas linhas escritas pelos autores. O terrorista elegante e outras histórias é um livro de muitas vozes dentro e fora de suas páginas.