“É ruim, mas é um ruim esquisito.” Esta frase e suas variações, que circula pelo folclore literário, têm na conjunção mas todo um caminho de ousadia, determinação e promessa num autor. Do teu fantasma vejo só o coração, de Thiago Souza de Souza, é assim. Escrito por um jovem autor gaúcho, o “mas… esquisito” se deve, neste romance, a um desejo de inquietar o leitor quanto a temas multifacetados e quanto ao foco narrativo que, em terceira e/ou primeira pessoas (às vezes com dificuldades para o monólogo interior, às vezes vacilante, às vezes acertando), debruça-se sobre a protagonista Fanta, seu tio, seu filho e depois mergulha numa narrativa (quase posfácio) da moça que a protagonista amou na adolescência.
Todas as direções têm como pano de fundo iluminar a protagonista. O leitor acompanha a história da menina educada no neopentecostalismo sob torturante influência dos pais congregados, e que chegou a liderar grupos de jovens.
Fanta queria as duas coisas: realização pessoal e se engajar no trabalho coletivo da Igreja, a Igreja que estende o amor de Cristo a quem se se arrepende…
Contradições
Líder evangélica, vai também se tornar uma cineasta radical conhecida nos meios “independentes”. (A contradição é indispensável.) O fato é que foi convidada a ser “Ministra da Edificação da Vida” de um governo de ultradireita — cargo que ocupará por poucos dias, pois um escândalo nas mídias a tirará do ministério: seu primeiro vídeo, biográfico e homoerótico, vaza na internet. Só saberemos ao fim da história por que e como vazou o filme.
O autor deseja marcar o peso dos cultos evangélicos que sufocam e distorcem valores morais e, sobretudo, nos revelar que Fanta, a eles subordinada, odiava a religião. (Difícil não lembrar, por outras razões, dos poucos dias de Regina Duarte como secretária de Cultura de Bolsonaro.) Às vezes, a contradição emerge quando Fanta pensa: “Bem-aventurados os que não mandam os pais para a casa do caralho”.
A protagonista se dedica intensamente à recuperação do tio alcoólatra, que ganha força como conselheiro e amigo. Em vários momentos, o tio diz o que o próprio autor pensa, ou seja, emergem convicções que poderiam, claro, estar mais dissimuladas:
A mágica é a seguinte, ele disse, não tem como entender de verdade e por completo outra pessoa, só que tentar é a coisa mais importante que existe…
Como voz crucial em sua mente, o tio parece ecoar, além das conversas, algo erotizado — prestes a ocorrer, mas não narrado — o que é muito bom. O remorso ecoa também, pois ela o internará numa clínica de reabilitação, enganando-o. Esquisito é tanto amor pelo tio, talvez para compensar o desprezo da própria mãe pelo irmão. A rigor, o autor nos mostra um outsider, para quem a bebida vale como remédio para a lucidez.
O escândalo
Fanta conhece uma jovem com quem viaja na adolescência. Ambas têm paixão pela direção de filmes radicais. Como tudo é narrado em terceira ou primeira pessoa — que oscila muito —, o leitor se acerca e depois se afasta, sem tempo para análise mais profunda. Parece um defeito narrativo a superar. Essa guria voltará para dirimir no leitor dúvidas que ficaram sem resposta.
Há, como disse, problemas na construção do monólogo interior, o que seria essencial tecnicamente para conhecermos melhor a alma dos personagens. Conversando com o filho, que aparece com narrativa quase pueril, iria bem o discurso indireto livre. É ruim?
Ela deu tempo a ele, e ele aproveitou o tempo para dizer que nunca entendera por que é que ela não bebia na frente dele, e que se estava fazendo isso agora, ele podia chutar que tinha alguma coisa a ver com o tio dela.
Parece um tanto rudimentar, mas pode ser o tal “ruim, mas esquisito” — muito eficaz para nos mobilizar.
Tempo e tempo
O que aparece com grande qualidade é o absoluto desprezo do autor pela linha do tempo, pela progressão temporal. Narram-se fatos e ações de vários tempos misturados que, mesmo assim, embaralhados, permitem entender o andar da vida. Adiante está o passado de um acontecimento que está sendo narrado. Isso incomoda o leitor (grande qualidade), que aceita lembranças, ações e relatos que se narram para se misturarem. É proposital, parece, e muito bem pensado.
Autoficção?
O filho único de Fanta, sem pai conhecido (um mistério na obra), foi educado por ela com grande dificuldade: autista superdotado, é a criança de exceção que as escolas rejeitam. E sobre ele (tratado por Filho, com caixa alta) se debruça a voz narrativa na segunda parte da obra. Na vida adulta, mãe e filho encontram-se pouco, falam-se pouco pelas redes e pessoalmente. Embora riquíssimos os diálogos entre os dois, o relacionamento com a mãe é frio e distante — talvez herança genética —, de onde vai assistir à velhice e à crescente demência da mãe, cuja morte o mobilizará a conhecer-se melhor.
O enfoque está no filho, que ama a namorada, é desprezado por ela e pela mãe. A narrativa tem aqui um momento claro de alteridade: o personagem Filho funciona quase como referência autoficcional do autor. E, salvo engano, parece ter relações com o romance anterior de Souza.
Por entre os diálogos entre ambos, sugere-se que ele, brilhante, mas autista, seria mais um “defeito” que Fanta trouxera para a vida. Assim como ela assumiu o alcoolismo do tio; assim como escondeu mal escondido o vídeo homoerótico. Aliás, o título desta obra, tão provocador — Do teu fantasma vejo só o coração —, serve a todos os personagens deste romance.
O que a obra evita — e isso é muito bom — é um maniqueísmo fácil, que daria caminho asfaltado para o leitor mediano, para o evangélico, para o artístico. Saio da leitura sem dignificar personagens ou me indispor com eles. Saio pensando nessa pobre mulher corroída pela igreja evangélica, nesse filho sem pai que teve e não teve mãe… e na amada da adolescência, que fez apenas o que Fanta determinou. Sobrepaira o tio sábio, mas alcoólatra.
Por trás desta obra complexa, cheia de espelhamentos, como diz Carol Bensimon na orelha, estão erros que são cometidos, mas nunca num dualismo simplório. (Aliás, vários cochilos da norma culta destoam das revisões da Companhia das Letras. Vai saber se os revisores também encontraram o lugar do esquisito.) Eu também me esquisitei nesta resenha, tendo a certeza de que este romance merece seus leitores.