De modo geral, nas literaturas contemporâneas de Angola e Moçambique, é inevitável a recorrência de um tema-chave, que norteia a produção poética e a ficcional: a questão da identidade. Em países novos, recém-saídos de longos e violentos processos de emancipação, a literatura não poderia deixar de ser um dos locais privilegiados para essa discussão e para a representação das tensões entre a cultura do colonizador e dos povos colonizados.
O moçambicano Mia Couto, um dos autores africanos mais lidos em Portugal e no Brasil, não poderia fugir à regra. Ex-militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), esse biólogo de formação consolidou uma obra — na poesia, no conto, na crônica e no romance —que, sem ser panfletária, faz da imprecisa identidade moçambicana uma de suas principais questões. Sua prosa chama a atenção pelas experimentações formais, principalmente pelo cultivo de neologismos (à maneira de Guimarães Rosa), e pelo tom “poético” conferido à descrição das coisas africanas. Bom exemplo é seu novo romance, O outro pé da sereia.
Enredo: Mwandia Malunga e seu marido, o pastor Zero Madzero, encontram uma imagem de Nossa Senhora abandonada nas imediações do lugar em que vivem, chamado, de modo significativo, de Antigamente. Mwandia é encarregada de ir a Vila Longe, onde cresceu, para providenciar um destino à imagem. Nesta história de retorno à casa natal, nos são apresentados uma série de personagens e seus dramas pessoais: um adivinho ermitão, a mãe e o padrasto de Mwandia, vários outros habitantes de Vila Longe e um norte-americano, acompanhado de sua esposa brasileira, em busca de suas perdidas raízes africanas.
Além da história de Mwandia, há uma narrativa histórica que, em capítulos alternados, conta como a referida imagem de Nossa Senhora chegou a Moçambique, trazida pelo jesuíta D. Gonçalo da Silveira em uma nau portuguesa em 1560. A imagem, benzida pelo papa, era destinada ao imperador do mítico reino de Monomotapa, a fim de catequizar a região. Os acontecimentos dessa viagem, que em certa medida espelham os eventos contemporâneos, envolvem, ainda, o conflito pessoal do jovem sacerdote Manuel Antunes, que será seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e a relação de um escravo, Nsundi, com uma dama portuguesa e sua aia.
Desde o início do livro, chamam a atenção alguns procedimentos comuns a outros romances de Mia Couto: o itálico para discriminar a fala dos personagens; o uso de falas das personagens como epígrafes dos capítulos; a dimensão sagrada da casa, da terra, do rio, do tempo; e a adesão da voz narrativa ao mesmo discurso mágico dos personagens, criando sentenças com sabor de aforismos ou ditados milenares. São expressões que estão por todo o romance, e em determinados momentos em excesso. Alguns exemplos: “A saudade é um morcego cego que falhou o fruto e mordeu a noite” (pág. 68); “Uma casa morre, se não é habitada com amor” (pág. 143); “Constança explicou: a cozinha é um ventre, é ali que se aquecem os materiais da vida” (pág. 167); “A terra é a página onde Deus lê” (pág. 175); “Quando se faz amor assim, de paixão total, fica-se longe das palavras. O encantamento é uma casa que tem o silêncio por tecto” (pág. 227); “O problema da solidão é que não temos ninguém a quem mentir” (p.239).
Ou seja: ao contrário de certos romances em que o elemento “regionalista” é descrito por uma voz distanciada, um narrador em terceira pessoa que não se confunde com o exótico que descreve, a voz do narrador de Mia Couto adere à fala dos personagens, não apenas no uso de neologismos (e este livro parece menos “inventivo” neste aspecto do que obras anteriores), mas reproduzindo ditos e valores que se confundem com os dos personagens. Alguns das citações acima são do narrador, outras não.
O tema principal do romance é o confronto entre culturas. Uma que obedece a uma lógica mítica, primordial; e a cultura estrangeira, letrada, positivista. É assim em muitos outros livros do autor. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), por exemplo, conta como o universitário Marianinho, de volta à terra natal para o enterro de seu avô, atravessa um processo de reinserção em sua comunidade de origem, principalmente a partir do diálogo mantido com o próprio avô falecido. Por meio de cartas misteriosas redigidas com sua própria letra, Marianinho se vê responsável por manter viva a memória e os costumes ancestrais e (literalmente) reconstruir sua casa. O mesmo ocorre com Mwandia que, ao contrário dos de sua família, é um pouco estudada e não compartilha plenamente os valores e as regras de comportamento dos da vila. Deste modo, sua convivência com diferentes vozes locais, muitas vezes contraditórias, funciona como um processo de (re)aprendizagem dos costumes, do sincretismo religioso e dos muitos interditos do lugar baseados no misticismo.
Em Mia Couto estamos, portanto, em uma nova geografia, imprecisa, cujas fronteiras ainda estão para serem definidas. Como uma Macondo africana, “em Via Longe […] só o impossível é natural, só o sobrenatural é credível” (pág. 94). Aqui, misturam-se vivos e mortos, passado e presente, história oficial e crenças locais, símbolos cristãos e ritos africanos, sonho e memória. É como se estivéssemos na tênue fronteira entre sono e vigília, fronteira já enunciada em outras “estórias” do autor e alguns de seus títulos significativos: Vozes anoitecidas (1986), Terra sonâmbula (1992) e Estórias abensonhadas (1994).
O homem africano
Em entrevistas concedidas recentemente, durante sua passagem pelo Brasil, Mia Couto disse pretender ironizar e questionar alguns arquétipos sobre o homem africano, principalmente a idéia fascista de pureza ou autenticidade, bem como os lugares-comuns em sua representação: as crendices, a feitiçaria, a sexualidade, etc. O resultado é, por um lado, bastante eficiente: são tratados com ironia tanto o desejo patético do afro-americano que quer ser africano, quanto as discussões, de lado a lado, sobre a globalização e a “legitimidade” da inevitável “mulatização” dos povos. E o autor tem o grande mérito de não ser maniqueísta: na qualidade de descendente de portugueses, um branco que se deixou influenciar não apenas pela cultura portuguesa como também por nomes brasileiros como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, Mia Couto é a própria personificação da miscigenação de povos, culturas e crenças que é um país como Moçambique. Além disso, sua mensagem não nos é transmitida de maneira abertamente panfletária, qual discurso político, mas está subjacente à série de imagens, metáforas e falas dos personagens que, elevadas ao máximo, conferem uma dimensão algo absurda ao conceito de pureza.
Metáforas como aquela que talvez seja a mais importante do livro: o rio, e a evocação implícita de sua terceira margem: “Agora, ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma” (pág. 238). A palavra — tanto da tradição oral quanto do livro, do documento escrito — é o lugar da construção da identidade, pois é onde se preserva a memória. Afinal, é imperativo, no processo de formação e consolidação da identidade, o questionamento do que deve ou não ser lembrado. Talvez seja este o aprendizado mais importante de Mwandia.
Há quem diga que o mais adequado ao rompimento dos arquétipos da “africanidade” seria a adoção de outro estilo narrativo que não o deste “realismo mágico”. Poderíamos colocar a questão nos seguintes termos: será que em O outro pé da sereia (por mais interessante e mesmo prazerosa que seja sua leitura), a legitimação e a exacerbação do universo mítico, provocada pelos procedimentos elencados anteriormente — epígrafes, adesão do narrador, geografia mágica —, não reitera precisamente a imagem do personagem e do mundo africanos exóticos, mergulhados nas crenças e na magia? Uma imagem estereotipada, portanto? A se pensar. De qualquer forma, que o romancista crie uma obra que consiga não apenas entreter e emocionar seus leitores, mas também estimular literariamente, e não dogmaticamente, tais reflexões, é um grande mérito.