Um legado incontornável

No romance de formação "Diário da queda", Michel Laub trata de culpa e judaísmo e produz seu trabalho mais completo
Michel Laub por Renato Parada
01/05/2011

Visitar o complexo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, é uma experiência tão perturbadora que hoje, passados mais de 65 anos do Holocausto, há quem ainda não se encoraje a enfrentar. No silêncio gelado daquele misto de prisão, área de trabalhos forçados e fábrica de extermínio humano puro e simples, ecoa tenebrosa a memória de todas as atrocidades cometidas contra os judeus que por lá passaram e morreram até sua libertação pelo exército russo em 1945. Nenhuma das inúmeras excrescências já concebidas pelo homem se equipara à sordidez daquele “campo de concentração”, expressão que nesse caso beira o eufemismo e que contrasta violentamente com a beleza do lugar onde foi erguido: um descampado que lembra em muito o pampa gaúcho. Os trilhos do trem levam até o portão principal e ali somem, triste metáfora do que significava desembarcar no inferno — e não há outra palavra que defina melhor o que foi, e ainda é, Auschwitz.

Se é tão sofrido para o visitante conhecer o local, tente-se imaginar então o que foi viver nele. Os poucos sobreviventes, que foram resgatados pesando 30 quilos e em seguida despachados para vários lugares do mundo à cata de um ou outro parente ainda vivo, nunca superaram inteiramente o martírio a que foram submetidos. Alguns conseguiram refazer a vida e readquirir a dignidade que lhes foi roubada. Outros, como Primo Levi, não suportaram a dor e sucumbiram a ela — o escritor italiano morreu em 1987, mais de quatro décadas após ter sido libertado, numa queda que, especula-se, tenha sido suicídio. Primo Levi é o autor de É isso um homem?, publicado em 1947, onde relata sua experiência de prisioneiro.

Auschwitz e É isso um homem? são elementos-chaves de Diário da queda, o novo livro do porto-alegrense Michel Laub, lançado há poucos dias. Mas não se trata de um romance de época, nem versa especificamente sobre o nazismo e o Holocausto, duas fontes de inesgotável matéria-prima para as diversas artes. Um romance de formação, talvez seja esse um enquadramento mais adequado, que lida com as conseqüências, sempre incontornáveis a um judeu, do que sofreram os antepassados. E não há um único parágrafo no livro que não esteja relacionado a isso.

Não é por outro motivo que a literatura feita por escritores de ascendência judaica, não importa qual seja o país onde vivam, tem algumas características que a tornam ímpar, a começar por um senso de humor peculiar e que tem origem na necessidade: rir da própria desgraça é muitas vezes a única forma de sobreviver a ela. O guia da excursão a Auschwitz, por exemplo, ao mostrar o galpão que servia de banheiro, a que os prisioneiros tinham acesso apenas dois minutos por dia e onde defecavam promiscuamente sentados lado a lado, conta que os alemães ali não entravam, temendo o contágio com alguma doença desses que consideravam seres sub-humanos. Um oficial designado pomposamente de “Mestre dos Sanitários”, ou algo parecido, puxava do bolso um enorme relógio de corrente e se postava à porta marcando o tempo com disciplina germânica. Lá dentro os prisioneiros riam muito, o que intrigava os carcereiros. Um dia o mistério foi esclarecido: os judeus haviam apelidado o oficial de “Senhor da Merda” e davam gaitada toda vez que se referiam a ele.

Apesar de suas muitas possibilidades, Laub nunca havia explorado esse filão. Em seus quatro primeiros romances, se algo denunciava sua condição de judeu, isso passou despercebido. Em Diário da queda, contudo, Laub recupera o tempo perdido e entra fundo nesse universo, subvertendo, inclusive, no sentido de que traz à luz um outro lado da discriminação, aquela praticada pelos judeus contra quem é gói, que é como eles chamam, com certa pejoração, os não-judeus. E exercita um humor tão sutil e melancólico que parece inexistir, embora seja inequívoca sua origem.

Humilhação
O livro tem seu ponto de partida na queda anunciada no título: num colégio israelita em Porto Alegre, o bolsista gói João é alvo de bullying — um termo de hoje para designar o que, nos anos 80 da história, se chamava ingenuamente de “gozação” — por parte de seus colegas, todos eles judeus. Apesar das humilhações a que é submetido diariamente e para não decepcionar o pai viúvo, João se vê obrigado a convidar a classe inteira para sua festa de aniversário, preparada com esmero, mas também com uma singeleza a que os convidados ricos e arrogantes não estão habituados. Todos comparecem e, em dado momento, propõem uma brincadeira típica das festas de Bar Mitzvah: jogar o aniversariante 13 vezes para o alto, amparando-o na queda com os braços estendidos. Na última vez, porém, combinam a travessura de deixar propositadamente que ele caia e se machuque, acabando com a festa e com a ilusão do rapaz de ter enfim se enturmado, além de humilhá-lo diante do pai.

O narrador é um dos colegas de João que, a partir do episódio, passa a viver a culpa — um sentimento que qualquer filho de mãe judia conhece como ninguém — por ter participado da maldade contra o companheiro. Quando João sai do colégio, ele decide sair junto, algo inconcebível na ótica de uma tradicional e abonada família israelita. Revoltado contra tudo e contra todos que tenham qualquer relação com o que julga ser a causa da própria crueldade, chega ao ponto de desdenhar o fato de o avô ter sido sobrevivente de Auschwitz. Uma surra do pai, por conta dessa atitude, abala profundamente a relação entre eles. Anos mais tarde cabe ao filho, agora morando em São Paulo, voltar a Porto Alegre para dar ao pai a notícia de que este sofre do mal de Alzheimer. Em outro desdobramento importante da trama, o narrador vive às voltas com o alcoolismo sem ver nisso um problema.

Duas histórias familiares são tratadas em paralelo e vão no fim se conectar umbilicalmente à principal: a primeira é a do avô que, a exemplo do que aconteceu com Primo Levi, jamais superou o trauma de Auschwitz — e aí se estabelece um diálogo intenso e angustiado com É isso um homem?. Ele veio para o Brasil, casou, teve um único filho e no final da vida foi aos poucos se excluindo do convívio social para, trancado em seu escritório, escrever páginas e mais páginas de verbetes para aquilo que se poderia classificar, com bastante ironia, de uma enciclopédia do mundo perfeito. A outra é a do pai que, diagnosticado o Alzheimer, decide escrever a história de sua vida. O narrador, por sua vez, também se torna escritor, fechando o ciclo.

Toda essa rica trama é desenvolvida em apenas 152 páginas, um espaço mais do que suficiente para Laub compor sua obra mais densa e emocional até agora. A concisão, a sobriedade, o apuro formal, a repetição insistente e às vezes nervosa de algumas frases e situações, características todas que já apareciam em seus trabalhos anteriores, continuam presentes em Diário da queda. A diferença agora está no tom, menos cerebral e subindo em direção ao confessional, talvez porque o cenário do romance esteja mais próximo do universo real do autor e a história tenha requerido uma abordagem mais intimista.

Nos principais capítulos, os parágrafos vêm numerados, sugerindo uma idéia de lista. A solução não chega a interferir na fluidez da prosa, pois a narrativa tampouco é linear, indo e voltando no tempo e pulando a todo momento de uma situação a outra. Mas a numeração seria uma firula dispensável, não houvesse também a intenção de vinculá-la aos verbetes criados pelo avô. Aí ganha um sentido. Há capítulos intermediários intitulados Notas. Neles, mais livres ainda, estão reunidas as “sobras” do romance: anotações que hipoteticamente não foram aproveitadas pelo autor. É outra idéia interessante, pois sendo pertinente todo o conteúdo apresentado nesses capítulos, eles vão emular uma parte do trabalho do escritor, que é justamente a de escolher, dentre vários elementos disponíveis — e todos, no caso, pertinentes —, o que usar e o que descartar na construção da história.

As sutilezas formais, contudo, seriam insuficientes para tornar Diário da queda uma leitura obrigatória. O melhor da obra está no que realmente importa quando se fala em boa literatura: uma história humana e narrada com rara sensibilidade. Com ela, Michel Laub se credencia desde já como o autor de um dos mais importantes lançamentos do ano.

Leia entrevista com Michel Laub.

Diário da queda
Michel Laub
Companhia das Letras
152 págs.
Michel Laub
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973. Escritor e jornalista, foi editor-chefe da revista Bravo! e coordenador de internet do Instituto Moreira Salles. Hoje é professor de criação literária e colaborador de diversos veículos e editoras. Publicou quatro romances, todos pela Companhia das Letras: Música anterior (2001); Longe da água (2004), lançado também na Argentina; O segundo tempo (2006) e O gato diz adeus (2009). Recebeu o prêmio Erico Verissimo/Revelação da União Brasileira dos Escritores e foi finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom (duas vezes), Fato Literário/RBS e Zaffari/Bourbon. Tem textos publicados na Itália e na Coréia.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho