Ninguém o lê, ninguém o conhece. Entre as montanhas mineiras, Autran Dourado é um nobre isolado por seu fosso de metáforas num castelo literário que ninguém nunca adentrou. Mesmo com o Prêmio Camões nas costas e toda a obra reeditada caprichosamente pela Rocco, Autran Dourado permanece um ente citado aqui e ali por algum acadêmico, se tanto. Uma injustiça, claro, a um escritor que, nos últimos cinqüenta anos, alheio a quimeras ideológicas e estéticas, consolidou uma obra respeitada, de teor universal e urbano, centrada na dualidade do homem ou, como preferem onze em cada dez críticos, barroca.
O barroco parece ser o estigma mais visível de Minas Gerais e, por conseqüência, das obras (e até políticos, pensando bem) que este Estado gera. Mas o desconhecimento do que significa o barroco leva a generalismos pouco apropriados à obra de Autran Dourado, tão carente da profusão de ourivesaria a que os altares setecentistas nos remetem. Pelo contrário, Autran enfoca em sua obra uma economia bastante “anormal”, para os padrões estéticos brasileiros, de cores e formas em seus personagens. A ópera dos mortos, por exemplo, não tem o barroquismo lingüístico de um João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro. Pelo contrário, é um livro intimista, sem grandes elucubrações que alcem o adjetivo à condição de viga mestra da narrativa. Autran Dourado é de um barroco seco, moldado na pedra da labuta diária, sem o alarde da inspiração divina. Sua obra, como veremos, não tem o alarde de toneladas de ouro para uma infinidade de santos.
O que é, então, este barroquismo de que falam os exegetas quando comentam a obra de Autran Dourado? A redução mais fácil e, por conseqüência, mais apropriada a este artigo, é a da dualidade. O barroco em Autran Dourado se reflete por este conflito de descrição fácil e concepção difícil que é o bem e o mal e todas as antíteses possíveis decorrentes desta. Há em seus livros um evidente jogo de luz e sombra, de dia e noite, de divino e de profano, que remete à idéia atormentada do barroco.
Nos dois ensaios que compõem Uma poética de romance — matéria de carpintaria, o próprio autor faz o papel de acadêmico a perscrutar sua obra através de dois ensaios. Leitura complicada e talvez dispensável para quem não tem interesse no intrincado e infelizmente romantizado processo de criação de uma obra literária. Em Uma poética…, Autran Dourado se afirma como um artífice da literatura, na linha quase arquitetônica de um João Cabral de Mello Neto. Descrente da inspiração como fonte abundante de obras-primas, ele crê na elaboração meticulosa das tramas e da composição escultural de seus personagens a fim de criar um enredo virtualmente isento de falhas. Com este “auto-estudo” minucioso da técnica narrativa, quer desmistificar a idéia do artista com uma obra passível diante da multiplicidade de interpretações e também do artista como um ser abençoado por Deus com um dom que lhe faz superior aos demais.
Diferente de Uma poética…, escrito numa linguagem que pode soar hermética, sugiro Um artista aprendiz, o único romance assumidamente pessoal de Autran Dourado, no qual ele procura narrar os caminhos que o levaram a querer ser um escritor.
Obscuridade. Autran Dourado faz questão de ser obscuro. Porque a claridade não convém ao claustro da narrativa barroca. Em seus livros de caráter mais severo com relação a seu posicionamento estético, o escritor compõe narrativas abertas, de linearidade meramente sugestiva. Isto significa que fica ao agrado do leitor a montagem do quebra-cabeça. Uma aproximação evidente (porém falsa, como faz questão de frisar o autor) é com o livro-jogo de Cortázar, O jogo da amarelinha. Autran Dourado, no entanto, induz à falsa linearidade, isentando o leitor de responsabilidade na montagem e posterior leitura de seus livros. Tal artifício, presente em obras como O risco do bordado, A ópera dos mortos e A barca dos homens, tem permitido conclusões fáceis sobre a obra de Dourado. Não são raros críticos e exegetas que o têm por um autor com graves falhas de coesão e unidade. A idéia, porém, é a de transformar os capítulos de seus romances em entidades com vida própria, em organismos autônomos que, dispostos em certa ordem, formem um todo a que se pode chamar romance.
Um exemplo disso é A barca dos homens. O livro narra a história de Fortunato, um deficiente mental que rouba uma arma de uma casa de veraneio em uma ilha e que, a partir disso, provoca uma verdadeira operação de guerra entre os moradores para capturá-lo e matá-lo. O romance é composto de dois grandes blocos, um que se passa durante o dia, num ancoradouro, e outro que se passa à noite, em alto-mar. Aí já ficam evidentes as predileções de Autran Dourado pelo confronto de idéias. Que não se encerram aí. Os capítulos que compõem o primeiro bloco são lentos e cadenciados, ao passo que o segundo bloco é todo ele um monólogo veloz, gramaticalmente subvertido.
O leitor que se aventurar por estas profundezas deve ter em mente que não está lendo uma obra de emoções rasas. A barca dos homens é um olhar difuso sobre a alma humana. Nada, contudo, que resvale no psicologismo irresponsável. A luta da ilha contra o pobre Fortunato permite confrontos bastante pertinentes não só entre os personagens e seus interesses terrenos, mas nos personagens e suas pequenas-almas a almejar sempre o equilíbrio, sem jamais alcançá-lo.
A ópera dos mortos é também um vislumbre sobre a alma barroca. Serve de exemplo, ainda, para uma temática que é bastante cara a Autran Dourado: a dualidade platônica e aristotélica. Ou seja, de um lado o homem dado ao sonho, às quimeras, à utopia, à vida desregrada e aventureira, à vastidão da imaginação; de outro, o homem no mais completo namoro com a razão, com a realidade, com a crueza da vida, com o regramento, com o possível, com o pragmático. É na história de Rosalinda, descendente de uma tradicional família mineira levada à bancarrota, primeiro pela escassez do ouro, depois pela decadência do ciclo cafeeiro, que se dá esta dicotomia, afinal, a mulher prisioneira de seus mortos é também a imaginação solta no exíguo espaço das mofadas paredes do sobrado da família.
Lugar-Comum. Autran Dourado é um amante do lugar-comum. Uma afirmação deste tipo talvez servisse para desqualificá-lo como escritor, afinal, nada mais insuportável do que uma repetição extenuante de clichês, como o que se vê na pior das piores literaturas, desde Sabrina até aqueles nomes que a gente cansa de citar: Paulo Coelho, Sidney Sheldon e quetais. Em Autran Dourado, porém, o lugar-comum subverte a sua condição de primo-pobre da metáfora e usurpa-lhe o trono, tornando-se, assim, protagonista da beleza do romance.
Em Novelário de donga novais, ele demonstra o valor poético insistentemente desprezado do lugar-comum, ou seja, da verdade popular, do dito, da conclusão apressada e repetida à náusea com as mesmas palavras de geração em geração até se que se sedimente à língua. No livro, Donga Novais é a personificação da literatura, ou seja, um homem que contém em si todas as histórias e mitos de uma cidadezinha, que faz as vezes de microcosmo. Donga Novais, porém, não conta tudo o que se sabe, mas apenas aquilo que acha interessante. Além disso, sofre de uma “doença” rara, uma insônia profunda que o mantém afastado de Morfeu ao mesmo tempo em que o aprisiona na constante admiração da vida. Por meio de ditos populares e de uma pequena comunidade de personagens construída unicamente de tipos de que falam nossas avós, Autran Dourado cria uma bela metáfora de como vencer a morte por meio da arte: o verdadeiro e talvez único papel da literatura.
Políticas. Nas próximas semanas, você, leitor, vai ouvir falar muito em Autran Dourado. Não por ele ter ganho o Nobel ou ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras. E sim porque ele ousou. A Rocco lançará neste mês Gaiola aberta, livro de memórias do escritor mineiro que conta os bastidores da administração de um dos mais idealizados políticos brasileiros, Juscelino Kubitscheck. Críticos de esquerda falarão mal do livro. E os de direita também. Analistas políticos o condenarão e o absolverão em laudas e laudas de papel jornal. Um deputado oportunista é capaz de fazer horas no Congresso sobre a literatura, esta arte nefasta, que corrompe nossa juventude, bla, bla, bla. Autran Dourado, que nunca figurou entre os best-sellers, venderá a rodo. Entrevistas e mais entrevistas serão concedidas em nome da verdade que alguns jornalistas analfabetos não conseguirão extrair do livro. O escritor terá de responder inúmeras vezes quais são suas influências, que livros gostaria de ter escrito e o que seria se não fosse escritor. Aquela coisa toda.
Tanto auê não se explica, já que esta não será a primeira vez que Autran Dourado escreverá sobre política. Em A serviço del-rei toda a corte de Maquiavel está presente em torno de João da Fonseca Nogueira, alter-ego do escritor mineiro e, no livro, um jovem aspirante a literato corrompido pelo poder. Arte e política se misturam em doses nada homogêneas enquanto Autran Dourado aproveita para contar sua trajetória como Secretário de Imprensa do governo JK, de 1955 a 1960. Claro, utilizando um que outro artifício literário aqui e ali. De uma maneira paralela, ainda, analisa a formação do artista, seus devaneios e seus desencontros com a agrura da labuta diária, quando, entre um capítulo e outro de um romance sempre inacabado, tem de redigir discursos para políticos. Fica evidente ao leitor atento, ainda mais em comparação a este Gaiola aberta, o tom memorialístico de A serviço del-rei. É como vovó já dizia: tudo já foi dito uma vez, mas, como ninguém ouviu, é preciso que se repita tudo de novo.