Um humanista contra a ira do estado

Esmagados entre o fascismo alemão e o horror stalinista não há personagens vencedores em Vida e destino
Vassili Grossman: luta em defesa dos “esquecidos em tempos inesquecíveis”
01/03/2015

É conhecida a frase aristotélica de que a história se preocupa com o todo e a literatura com o particular. A contraposição e a intersecção dos dilemas individuais com a inevitabilidade de um momento histórico ou com o estado de coisas do mundo são grandes geradores dos conflitos retratados na forma romanesca desde seu início.

O epítome aqui é Guerra e paz, de Tolstói, o inequívoco modelo para um dos principais lançamentos literários do ano passado: o monumental Vida e destino, de Vassili Grossman, em sua primeira tradução do russo para o português brasileiro, em esmerado trabalho de Irineu Franco Perpetuo, autor também do excelente prefácio, onde detalha a saga de clandestinidade dos manuscritos do livro.

Mesmo para os padrões russos, Vida e destino tem uma míriade de personagens que fará até um leitor experiente sofrer em suas primeiras noventa, cem páginas. De um campo de concentração alemão, com detentos de 56 nacionalidades, uma lúgubre babel onde descobrimos até o que é ovo em bielo-russo, vamos para os mais difíceis dias da resistência soviética ao cerco alemão de Stalingrado. A seguir passamos para o núcleo civil do romance, cujo principal personagem, alter ego do autor, é o físico teórico nuclear Viktor Pávlovitch Chtrum, de ascendência judaica, casado com Liudmila Nikoláievna Chápochnikov, aos quais praticamente todos os outros personagens da vida civil são ligados ou aparentados. O excessivo número de personagens do romance pode ser um reflexo da tentacular, aterrorizante e por vezes risível burocracia stalinista. Um Estado onde qualquer pessoa pode ser provocador, agitador, sabotador, delator ou diversionista.

Mas eis que surge o capítulo 18 da primeira parte, que finalmente estabelece um pathos de compaixão com qualquer leitor: a dilacerante carta de despedida da mãe de Chtrum, Anna Semiônova, cercada em um gueto judeu em alguma cidade da Ucrânia ocupada pelos alemães. Um pungente tour de force com arrebatador sentimento, mas jamais sentimental, apresenta duas posições caras ao autor: a literatura como contraponto à barbárie, pois Anna Semiônova, dentro dos 15 quilos a que tinha direito, leva basicamente livros, de Tchékhov a Alphonse Daudet; e a tenaz luta contra o antissemitismo, definido à perfeição por ele como “a medida da mediocridade humana.” Outros personagens judeus são descritos nos capítulos da jornada para a ignomínia das câmaras de gás (construídas sob as especificações da “turbina, matadouro e incinerador de lixo”), da médica militar de meia-idade Sófia Óssipovna Levinton ao menino David, que morrem abraçados, ele primeiro por ter menor peso, como camundongos de laboratório, e ela a exclamar: “Finalmente virei mãe!”. Diante de cenas como essa, não há como discordar do autor quando ele defende que o humano e o fascismo não podem coexistir.

O destino dos intelectuais
Esmagados entre o fascismo alemão e o horror stalinista não há personagens vencedores em Vida e destino. Na seção especial dos derrotados estão os intelectuais. Stálin forjou uma nova consciência nacional a partir da brutal coletivização das terras (com milhares de mortos e fome), da industrialização, e dos expurgos de todos os principais bolcheviques. O ano de 1937 é de longe o mais citado no livro, uma noite escura na alma de todos, enquanto a comemoração em Stalingrado dos 25 anos da revolução bolchevique é descrita com pesar e decepção com o discurso do burocrata Priákhin.

O velho bolchevique Mostovskói, detido no campo de concentração, encontra-se imerso em dúvidas, ainda tenta acreditar na Revolução, mas “não podia romper consigo mesmo, ou parar de se encontrar”. Percebe ao final que seu único real interlocutor é o inimigo de juventude, o menchevique caolho Tchernetzov, a quem chamava de “lacaio de luvas”. Em um dos mais temíveis e importantes capítulos, Mostovskói é convocado pelo oficial da SS Liss para um exercício de xadrez político. O oficial nazista desfila as semelhanças entre eles, com citações cifradas de Oswald Spengler ao fundo. O nazismo e o stalinismo seriam iguais já que em ambos “O Estado é o Partido”, e seus respectivos inimigos são os judeus e os cúlaques. Mostovskói não consegue responder a nenhuma das provocações de Liss, apenas rumina imprecações mentais.

O comissário Krímov, bolchevique há vinte e cinco anos, é denunciado por “atividades contrarrevolucionárias” ao final do livro e vai passar uma temporada na prisão política de Lubianka. De frente para seus algozes, ele vê seu próprio fim, sua substituição por capangas e burocratas pequeno-burgueses, mesmo antes das falsas acusações contra si mesmo que ele irá assinar após três dias sem dormir e sessões de espancamento “científico”, em uma aterrorizante descrição do que foi o grande expurgo stalinista e que só encontra equivalente na distopia orwelliana 1984.

No destino da vida dos membros da intelligentsia, nenhum é mais simbólico do que o de Chtrum. Evacuado com a família em Kazan, tem a iluminação científica da sua vida e desenvolve uma nova teoria que implicará em novos resultados práticos. Não é dito às claras no romance, mas trata-se do programa nuclear soviético, cujo resultado é o poderio atômico dos tempos da Guerra Fria. Concomitantemente trava conversas subversivas com o historiador Madiárov, suposto paladino da liberdade e da democracia, e o erudito tártaro Karímov, as quais aceleram seu processo de entropia espiritual. Sua queda começa quando o aparato do Comitê Central do PC não se entusiasma com seu trabalho. Ao contrário, alega que sua teoria confronta as teorias materialistas de Lênin sobre a matéria (!!) e inicia um ataque por ele ser individualista, não trabalhar pela coletividade e pelo povo. Colegas passam a não cumprimentá-lo, desviam ao vê-lo na rua. Em suma, se transforma em um pária. Naquele que talvez seja o momento central de Vida e destino, Chtrum é pressionado (inclusive pelos colegas de laboratório) a escrever uma carta de arrependimento ou fazer um pronunciamento na reunião do Conselho Científico. Sua filha Nádia, um primor de inteligência e ímpeto juvenil, pergunta ao chegar da escola no dia decisivo: “Papai já foi se arrepender?”. Em uma atitude tipicamente judaica, Chtrum decide ser um mensch, homem digno e honrado, e não vai à reunião. A família se prepara para o ostracismo total quando ocorre uma grande reviravolta. Em um surpreendente episódio Deus (ou demônio?) ex machina, uma ligação telefônica altera seu destino. Todos no Instituto de Física passam a reverenciá-lo, suas solicitações são atendidas, com direito até a carro oficial em casa para ir ao trabalho. O egoísmo impulsivo de Chtrum o leva inclusive a ver um lado humano naqueles que o perseguiam. Mas a glória do pacto fáustico é sempre fugidia. Após uma convocação, aceita inexplicavelmente assinar uma torpeza redigida por asseclas do Partido, por “medo de novos medos”, e comete um estupefaciente suicídio moral. Sua derrota é a mais dolorosa de todas.

As matrizes literárias
Todos escrevem à exaustão a filiação de Vida e destino à Guerra e paz. O tributo é inquestionável, já que o autor levou apenas a obra de Tolstói consigo para sua atividade jornalística na Segunda Guerra Mundial e a leu duas vezes. Grossman é um mito do jornalismo de guerra, mas o Grossman ensaísta é muito inferior a Tolstói. Os capítulos ensaísticos são povoados de platitudes, sejam sobre a amizade ou o antissemitismo; não trazem iluminações originais que se esperam de uma obra desta ambição. Há alguns acertos pontuais como a equiparação da evolução da física moderna após a fissão do átomo à ascensão dos totalitarismos.

Este mísero escrevinhador prefere ressaltar outro gigante das letras russas, cujo débito de Vida e destino não é menor: Anton Tchékhov. O eloquente e subversivo historiador Madiárov (um agent provocateur?) afirma de modo brilhante que “Tchékhov carregou nos ombros o peso da irrealizada democracia russa”, enumerando todos os tipos humanos que desfilam em seus contos, somente “inferior a Balzac”. Este viés ficcional de apresentar uma vastidão de tipos humanos em sua simplicidade e singularidade individual (afinal, assim como as isbás, cada indivíduo é único) é também perseguido por Grossman na sua luta pela defesa do ser humano, dos “esquecidos em tempos inesquecíveis”. Não por acaso a personagem mais admirável do livro é a velha matriarca Aleksandra Vladímirovna Chápochnikova, tchekhoviana na essência. Ela é a última das grandes personagens a se despedir de nós ao visitar as ruínas de sua casa em Stalingrado. Ao lado de um genro, uma neta e um bisneto recém-nascido, ela responde com prosaico estoicismo à pergunta do desalentado genro “Para onde ir?” com um “Não importa, meu querido, a vida é assim”.

Por fim, talvez sejam ninharias, mas cabe notar alguns problemas da edição nacional. Há vários erros de digitação, falta de pontuação e ausência de padronização de sobrenomes. Há também erros de parentesco entre os personagens. Logo na página 78, lemos: “Ao passar pelo quarto do cunhado, Aleksandra Vladimírovna repetia….”. Mas naquele momento ela morava com a filha, o genro Chtrum e a neta Nádia…. Por sua vez, na página 655, Abartchuk é referido como primeiro marido de Ievguênia Nikoláievna, quando àquela altura o leitor já sabe que o personagem havia sido casado com a irmã, Liudmila Nikoláievna. Problemas que podem ser tranquilamente corrigidos em uma segunda edição. No pólo positivo, temos a essencial relação de personagens ao final e seus respectivos círculos, além de numerosas notas de rodapé, que funcionam como um curso rápido de história russa, onde somos informados desde o cisma religioso entre Avvakum e Níkon no século 17 até quem foi Sófia Peróvskaia.

Em um encontro recente com amigos, lancei um desafio à mesa: qual é o grande romance da Segunda Guerra? Foi mencionado apenas um livro, Os nus e os mortos, de Norman Mailer, raramente lido há tempos. A fotografia e principalmente o cinema, em clara evolução técnica e artística antes e depois da guerra, haviam se tornado duros rivais, com todo seu potencial imagístico da barbárie. Mas estas expressões artísticas poucas vezes conseguem nos dar aquelas epifanias que tanto precisamos. Em sua amplidão, Vida e destino atinge em vários momentos a plenitude perdida do particular.

Vida e destino

Vassili Grossman
Trad.: Ireneu Franco Perpetuo
Alfaguara
915 págs.
Vassili Grossman
Nasceu em 1905, em Berdíchev, Ucrânia, em uma família judaica. Foi correspondente do jornal do Exército Vermelho durante mil dias na Segunda Guerra Mundial. Cobriu desde a batalha de Stalingrado à libertação do campo de Treblinka, sobre o qual escreveu o texto O inferno de Treblinka em 1944, o primeiro texto em qualquer língua sobre um campo de concentração e usado nos julgamentos de Nuremberg. Faleceu em 1964, três anos após os manuscritos de Vida e destino terem sido confiscados por agentes da KGB em seu apartamento de Moscou.
Marcelo Laier

É tradutor, graduado em Inglês pela FFLCH/USP.

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