Afonso Henriques Neto é um daqueles notáveis nomes trazidos à cena literária pela antologia 26 poetas hoje (Coleção Bolso, 1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Foi uma revelação importante à época, sem dúvida. E toda a poesia “suja, ruim e sem qualidade” que a crítica recebeu naquele momento, aos poucos foi substituída por uma poesia limpa, ruim e sem qualidade. Houve um equívoco de faxina. Removeram o que havia de essencial naquela geração e que a crítica encarcerava no adjetivo “sujo”. A própria Heloísa, já em 1997, chamava a atenção para o número de mortos dentre aqueles poetas. Mortos e sumidos, acrescentaria. O saldo, porém, foi brilhante, se pensarmos em Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, duas poéticas vibrantes, renovadoras, fundamentais para o desdobramento de nossa lírica. Se reconhecidos pela mídia ou não, esse é outro ponto.
Pois Henriques Neto acaba de publicar um livro de tirar o fôlego, Cidade Vertigem. Não pelo título, mas sim pela inquietude extrema com que nos leva a percorrer suas mais de duzentas páginas. É obra fascinante — por sua linguagem múltipla, que mescla poesia, narrativa e ensaio — e verdadeira — ao partir de experiências vividas pelo poeta. Na entrevista abaixo, o autor discorre, entre outros assuntos, sobre cultura de massa, utopia e poesia brasileira.
• Em 1996, você situava Cidade vertigem como “um livro sobre a megalópole, poemas e textos imersos no puro delírio persecutório/labiríntico/atordoante de um meio ambiente cada vez mais adverso à vida humana e por extensão à poesia”. Qual o saldo desta aventura? De que maneira você considera satisfatória a aventura deste livro?
A publicação de Cidade vertigem me deu grande prazer. Realizá-lo foi, sem dúvida, uma aventura. É verdade que, desde o início de minha trajetória poética, a preocupação com a vida humana nas grandes cidades industriais modernas sempre se mostrou presente. Mas foi a partir de 1985 que resolvi trabalhar um projeto com temática bem definida. Ou seja, iniciei, mais ou menos naquela data, a construção do livro sobre a cidade. Quando fui realizar doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ, em 1993, propus como tese desenvolver um trabalho a partir daquele longo poema que vinha escrevendo sobre a idéia de cidade: busquei então “explicitar” as fontes que havia utilizado para a produção do poema, “explicando” assim a sua gênese, ou melhor, descrevendo os processos e os caminhos utilizados pelo eu literário (ou subjetividade do autor, ou ainda a tal voz poética). Foram escritos, assim, vários ensaios que procuraram dar conta dos principais assuntos tratados no poema: entre outros, a presença da utopia desde Platão até a atualidade; o exame da história da cidade e de algumas idéias de urbanistas que sempre me interessaram; e um passeio pelas visões urbanas de escritores como Baudelaire, Eliot, Kafka e Joyce. Utilizei também a prosa poética na forma de uma passagem do poema para os ensaios. Enfim, busquei revelar, pela linguagem, os delirantes, complexos e labirínticos mecanismos daquele “monstro” que se convencionou chamar de megalópole, esse meio ambiente adverso a tantos sonhos e esperanças. Quando, recentemente, fui dar forma final ao livro, procurei estruturá-lo sem me preocupar com um formato de tese, montando os textos (e escrevendo novos) com total liberdade, de modo que o resultado ficasse o mais interessante possível para o leitor.
• No livro, você recolhe inúmeros depoimentos. Um deles é de Ferreira Gullar: “Uma cidade/ é um amontoado de gente que não planta/ e que come o que compra/ e pra comprar se vende”. Contudo, o livro não se limita a uma visão pessimista do homem e de sua condição urbana. Sob esse prisma, qual a utopia do Afonso Henriques Neto?
É isso mesmo: o livro busca uma visão bastante abrangente do assunto, não se limitando à óbvia crítica dos aspectos desumanos da megalópole. A grande cidade tem a nos oferecer também possibilidades luminosas. Minha utopia permanece na direção de um humanismo socialista: educação, saúde, habitação, trabalho, liberdade e lazer para todos. O cinismo contemporâneo pode até falar na ingenuidade dessa formulação, colocada assim de maneira tosca (afinal, todos querem isso), mas, do meu ponto de vista, o trabalho poético quer sempre contribuir para o sonho de se tentar construir um homem melhor, que possa viver numa sociedade mais tolerante, defensora da justiça e da paz (mesmo quando a poesia vem carregada de conflitos, de sangue, de guerra: reflexo da crua realidade que nos submete ou que, ao longo dos séculos, nos submeteu). Seja como for, sempre procurei pensar uma cidade mais democrática, socialmente mais equilibrada, mais humana, e, se o nome disso é utopia, sigo com ela.
• Numa entrevista à revista Azougue, você observou que “a cultura de massa em todos os seus desdobramentos, inclusive pelos caminhos da informática, tem levado a uma mudança para pior na construção de obras literárias”. Num depoimento à revista Poesia Sempre, você destacou “a profunda crise atualmente vivida em função da multipresença da imagem televisiva e de certo tipo de retórica imbecilizante que invade a comunicação de massa”. De que maneira a poesia se sente, efetivamente, impedida por tais aspectos, e o que tem se modificado nesses últimos oito anos em que supostamente os poetas já deveriam ter aprendido a combater essa pirotecnia?
Vamos separar as coisas para que fique mais claro o meu pensamento sobre essa tal cultura de massa. De um lado coloquemos a literatura de massa: são, por exemplo, os romances escritos para um amplo público, seguindo determinados padrões de estrutura e de estilo, com situações e personagens modelados pelo (ou colados ao) senso comum (falamos de um Sidney Sheldon ou de um Paulo Coelho). É óbvio que há que se ter “talento” para bem trabalhar nesse registro, pois o sucesso não está garantido pela simples aplicação de fórmulas mais do que gastas. Do outro lado do estereótipo, se movimentam as estranhas atmosferas que trocam de sinal todo o tempo, um oceano que se move no registro da permanente invenção, o reino sem palavras que costumamos chamar de espaço mitopoético (e que só pode ser tocado, paradoxalmente, por meio da utilização dessas palavras há muito gastas). Roland Barthes vai dizer que a literatura é o logro consciente, o jogo inventado pelo escritor para fugir do lugar-comum, esse monstro emboscado na curva de cada signo, de cada palavra. É por isso que a poesia “vende pouco”, nada tendo que ver com o universo da comunicação de massa: no poema circula uma linguagem rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida mais rica, mais plena.
• Nos poetas da geração de 70, havia um certo descuido com a linguagem. Saltamos de uma geração que aparentemente tinha o que dizer, sem saber como fazê-lo, para uma que aprendeu o domínio de uma técnica — mas que nada tem a dizer. Como você vê essa passagem, havendo mesmo uma?
O mundo literário, como tudo mais, não é simples. Disse uma vez, em entrevista, sobre a minha “impregnação literária”, fruto principalmente da convivência com o meu pai poeta e com os livros da biblioteca dele. E falei também de certo “descaso” dos poetas da minha geração com a linguagem e com a busca de uma sólida formação literária. Mas veja o exemplo do Cacaso, um dos bons nomes da geração: ele produzia muitos poemas com certo ar “largado”, trabalhando dentro do registro coloquial, com pitadas irônicas um pouco à moda dos modernistas de 1922, mas todo mundo sabia de sua excelente formação literária, sendo ele inclusive professor de literatura (o ar “largado” era uma construção consciente). O mesmo aconteceu com a Ana Cristina César, com o Eudoro Augusto. O Francisco Alvim também produz obra bem construída e de grande força lírica, e nos seus poemas sempre ficaram nítidas as influências de vários mestres, como Drummond e Bandeira. Chacal, que já pertence ao time dos que não lidam de forma contumaz com o passado literário, aposta mais no seu “faro” poético, produzindo um trabalho de muita qualidade. E assim a coisa vai. A minha crítica ao “relaxo” de alguns poetas pode ser aplicada em qualquer tempo. O problema é que, como a tal “geração marginal” trabalhou muito no campo do coloquial, ficou mais difícil separar o joio do trigo. Mas ainda prefiro a atitude visceral da geração de 1970 do que certa retórica beletrista que vem povoando os livros de hoje: não basta o domínio técnico, uma certa postura formalista, para se fazer um bom poeta. O melhor, talvez, seja juntar as duas coisas: visceralidade e consciência técnica. Mas uma coisa é certa: se você quiser mesmo saber o que é grande literatura, siga os passos de Ezra Pound e procure Homero, Safo, Propércio, Catulo, Dante, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa. No Brasil, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e os modernos.
• Concordo com você em relação a Jorge de Lima e Murilo Mendes. Eles “alcançam grandiosidade imagética a partir de um catolicismo vivido na profundidade da presença de um Cristo cósmico, arquiteto de todas as tessituras da vida e da morte etc”. Encontramos essa mesma dimensão ou zona de tensão, por exemplo, em um poeta como o boliviano Jaime Sáenz (1921-1985). No Brasil, Jorge e Murilo acabaram sendo vítimas de um duplo preconceito, mal compreendidos ora por serem católicos, ora por serem surrealistas. Essa ausência de uma coexistência de princípios opostos entre nós não lhe parece impeditiva de certo crescimento existencial, garantia inclusive de uma miserabilidade intelectual?
Sem dúvida alguma. Murilo Mendes e Jorge de Lima foram “esquecidos” por longo tempo por serem católicos e desenvolverem suas imagens a partir da estranheza do universo surrealista. Até hoje ainda esbarramos com esses preconceitos, apesar de eles se encontrarem mais diluídos. Acho que Murilo e Jorge são atualmente curtidos com mais liberdade, sem essa bobagem de “esquerda” ou “direita” no mundo da qualidade literária, e isso é muito bom. A verdade é que os melhores poetas apresentam sempre múltiplas faces no seu trabalho, pois a mente humana não é linear, e sim exemplo bem acabado do que hoje se costuma chamar de campo da complexidade.