Um gole de vinho

"Como morrem os nossos escritores", de Hélio Pólvora, explora os bastidores da literatura
Hélio Pólvora, autor de “Como morrem os nossos escritores”
24/12/2018

“A crônica, tal como a conhecemos e praticamos hoje (registro de estados de ânimo, comentários sobre fatos do cotidiano, banal matéria biográfica ou densa página de cunho existencial), advém dos faits divers, aquelas colunas de prosa leve e solta, tantas vezes leviana, do jornalismo diário ou semanal. Nasce para morrer logo, como as cigarras, atiçada pelos estios que a condenam ao efêmero — mas, se suplanta as circunstâncias, conduzida por um cronista-escritor, vinga como gênero literário. Sei que alguns críticos lhe negam status de gênero, aferrados que estão a uma teoria de gêneros literários que a fusão atual dos gêneros já mandou para as urtigas. Felizmente, ao escrever, não pensamos nos críticos, nem a eles nos dirigimos.”

De todos os gêneros da prosa, a crônica foi o que mais demorou para, de alguma forma, fazer a minha cabeça. Muito antes de pensar em um dia escrever sobre literatura, lia volumes como os de Luis Fernando Verissimo e não entendia muito bem por quais motivos tanta gente se maravilhava com aquilo. Claro que alguns textos me agradavam, mas boa parte deles era totalmente dispensável, banal. Só muito tempo depois que fui entender que era justamente da natureza daqueles escritos a despretensão; eram feitos para sair no jornal ou na revista e durarem no máximo uma semana — algumas vezes, um mês; em outras, um dia. Não nasciam necessariamente para, graças à força da arte literária, alcançar a eternidade com os livros. O trecho acima, claro, dialoga com isso e foi retirado de Como morrem os nossos escritores, de Hélio Pólvora, livro central neste nosso papo.

Autores como Antonio Prata e seu Meio intelectual, meio de esquerda, Luiz Antonio Simas e seu Ode a Mauro Shampoo e outras histórias, Luís Henrique Pellanda e seu Detetive à deriva e Marcelo Moutinho e seu Na dobra do dia, seja por apresentarem volumes coesos, seja por encontrarem um Rodrigo leitor muito mais maduro, me fizeram perceber que um livro de crônicas poderia ser algo muito superior àquela caricatura que trazia de outros tempos em minha mente. Hoje, se tenho um volume de crônicas em mãos, o encaro como qualquer outro. Sigo encontrando muita coisa ruim no gênero? Claro. Mas isso também acontece com os contos, romances, livros de não ficção… O que domina é o lixo, independente da área; o trabalho é sempre enfiar a cabeça nas pilhas de tranqueiras para encontrarmos o que realmente vale a pena.

Primeiras impressões
Pois se comecei a ler Como morrem os nossos escritores já despido do preconceito que tive outrora, de cara topei com duas coisas que andam me azedando. O primeiro personagem que me apareceu foi um cidadão que “torcia visivelmente para que o tempo andasse mais depressa. Recolhia suas coisas, a pasta, os livros, ia embora, direto para casa. Nada de choperias, de bares de esquina. Mantinha-se afastado de todos os lugares e manifestações de vida boêmia”. Não gosto de tipos que negam o bar, logo o início da leitura se deu com sérios problemas de empatia.

Não bastasse, imediatamente fica claro que as histórias serão povoadas por intelectuais. Ando de saco um tanto cheio de livros que falam sobre jornalistas, professores ou escritores. Um dos critérios que tenho para um volume ir pro fundo da pilha é esse: trata-se de uma ficção protagonizada por qualquer pessoa que de alguma forma trabalhe com a palavra? Vai pro final da fila. Se o enredo ainda trouxer alguém que trabalha com a palavra lamuriando sua dificuldade em lidar com a palavra, vai para a estante ou para a pilha de doação. Só que eu que pedi para resenhar um livro que se chama Como morrem os nossos escritores, então que fosse profissional, deixasse o ranço de lado e o encarasse de cabeça e coração abertos, com dignidade.

E nem precisaria de tudo isso. O livro é tão gostoso que quebraria qualquer antipatia assim que eu começasse a curtir suas histórias, apesar do amigo que logo de cara dispensa o chope. “Creio que a glória literária está reduzida a isso: ser lembrado por alguém, alguma vez, em algum lugar, em conversa vadia regada por goles de vinho.” Ainda que não tenha me oferecido o vinho, Pólvora se saiu muito bem no papel de lembrar colegas que admirou profundamente — muitos deles seus convivas — e conduzi-los à tal glória.

Nos bastidores
É um livro destinado essencialmente a quem gosta dos bastidores da literatura, é inegável. Estão ali histórias que envolvem Haroldo de Campos e sua residência que mais tarde seria transformada na Casa das Rosas e um ótimo diálogo imaginado entre Albert Camus e Fernando Pessoa — que vez ou outra aparece flanando pelo volume. Imperdível é a recordação de quando Jorge Amado contratou atrizes famosas para marcar presença numa feira de livros e alavancar as vendas. Graças à obra que conheci Fausto Cunha, um dos precursores da ficção científica no país, autor de As noites de marcianas, de 1960, e que se destacou também como crítico e ensaísta.

Em tempos de crise migratória, foi bom reencontrar Otto Maria Carpeaux, autor do colossal História da literatura ocidental, “um dos muitos intelectuais europeus que, sob ameaça do nazismo, emigraram para o Brasil. Bom para as nossas letras. O meio literário recebeu deles forte injeção de ânimo, veio a convencer-se de que, sem disciplina, sem leitura intensiva, sem o exercício apurado do pensamento as vocações se estiolam cedo, como certas flores de pântano”. Também é interessante acompanhar os relatos de Pólvora sobre a busca pelas pegadas de autores como Ernest Hemingway e William Faulkner. “Sempre me fascinaram casas deste ou daquele poeta, de um ou de outro prosador. Creio que elas, o berço, desnudam a expressão da obra”, confessa.

Mundo das letras
Vez ou outra, também procuro visitar casa de autores. Não que saia de São Paulo exclusivamente para isso, mas, se vou para alguma cidade desconhecida, é sim uma opção de passeio. Quando estive em Paris, mirei uma caminhada até a Maison de Balzac, onde viveu Honoré de Balzac (obviamente), que teoricamente abriga um museu sobre o escritor. O que vi, no entanto, foi uma casa semiabandonada, de jardim malcuidado e exibindo alguns poucos pertences do autor d’A comédia humana dispostos sem grande preocupação com a ambientação. Em outras palavras, uma cilada à francesa.

Já no Chile, as casas de Pablo Neruda são passeios quase que obrigatórios. As duas que fui — em Santiago e em Valparaíso — valeram bastante a pena; trouxe comigo a imensa certeza de que Neruda é uma das pessoas mais cafonas que já passaram por esse planeta, tanto que foi capaz de botar uma ave empalhada pendurada sobre a mesa de jantar da residência litorânea. Mau gosto absoluto, mas uma joia para o visitante — pelo menos ele também era bom de copo, tanto que espalhava e até escondia bares pelos seus

Não, não esqueci do livro de Pólvora, é que ele se presta a isso também: estabelecer com o leitor um papo sobre pessoas do mundo das letras. É daquelas obras que parecem estar sempre convidando o outro ao diálogo, incentivando que também conte as suas histórias. Ainda há ali momentos que soam como fofocas — Faulkner se embriagando num aeroporto de São Paulo —, observações sagazes — o quão absurdo é a estátua de Drummond, um mineiro, estar de costas para o mar de Copacabana; mineiros costumam fazer de tudo por uma vista do oceano, argumenta —, uma bela análise de Kafka feita a partir de um retrato de Vavro Oravez e a oportuna lembrança de uma passagem com Antonio Callado, que, diante de uma bela manhã de primavera no Rio, disse “Este não é dia para se dar ao patrão”, ao que Pólvora ao final complementa: “Aqueles dias da nossa última primavera não eram mesmo de se dar ao patrão — e tampouco aos generais repressores”.

 

Como morrem os nossos escritores
Hélio Pólvora
Casarão do Verbo
208 págs.
Hélio Pólvora
Nasceu em 1928, em Itabuna (BA), e morreu em 2015. Foi jornalista, contista, romancista, crítico literário, cronista e tradutor. Fazem parte de sua obra títulos como Inúteis luas obscenas, Memorial de outono e Contos da noite fechada.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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