Para começar com um trocadilho bem infame e não muito criativo, posso dizer que Leitura fácil, da espanhola Cristina Morales, não é uma leitura tão fácil assim. Não pelo estilo — a escrita é criativa, inventiva e fluida. Mas pelos temas e pela maneira com que a autora escancara algumas duras verdades sobre a vida de pessoas com disfunções cognitivas na sociedade — narrativas que, em geral, ficam mais escondidas.
Morales nos apresenta quatro mulheres, todas parentas, com diferentes níveis de disfunção intelectual e cognitiva. Vivendo juntas em um apartamento em Barcelona graças a programas de incentivo para vidas mais independentes, as quatro navegam a vida, os amores e as relações complexas de qualquer cidade grande — mas com obstáculos a mais. Os auxílios do governo são suficientes para que vivam minimamente, mas vêm com contrapartidas: elas precisam participar de reuniões e demais atividades promovidas para integração, mesmo quando essas atividades não são tão interessantes para elas.
Um dos exemplos, que gera um diálogo muito bem conduzido pela autora, é sobre dança. Nati, uma das protagonistas, participa de um programa de dança inclusiva, quando em um dos encontros faz par com um outro personagem com dificuldades de locomoção. A atividade proposta pelo professor é realizar um porté — passo de dança em que uma das pessoas do par levanta e move a outra pessoa. Dentro da dança inclusiva, isso poderia ser simplesmente levantar e mover o dedo da outra pessoa. Mas Nati questiona: será que isso não é limitador, humilhante, desnecessário? Será que não seria mais proveitoso para todos propor exercícios que todos possam fazer, ou que sejam mais adequados aos seus limites físicos?
Entre os questionamentos, dramas, dificuldades e indignações ao longo da obra, estão a institucionalização das doenças mentais, a pobreza menstrual, o desejo feminino e tentativas de oprimi-lo, o capacitismo, a gentrificação e o acesso à moradia, a qualidade dos serviços públicos e o direito ao próprio corpo. E mais do que isso: como lidar com esses temas quando o próprio indivíduo, sob a tutela do estado, não tem poder de decisão sobre sua própria vida.
Construção das personagens
Um dos aspectos que mais chamam a atenção no livro é a escrita. A autora cria cada uma de suas personagens por meio de um gênero textual específico, em geral condizente com as capacidades das próprias personagens. Encontramos uma narrativa em primeira pessoa mais articulada por parte da personagem que teve mais escolarização, por exemplo. Encontramos a segunda com mais escolarização em seu rascunho de romance, escrito no gênero “leitura fácil”, que escreve em seu grupo de apoio no WhatsApp. Uma das outras aparece como narradora em primeira pessoa da sua história como testemunha em um processo — transcrito por um funcionário público —, enquanto a última é uma das vozes nas atas de um grupo anarquista de ocupação de imóveis. As narrativas se intercalam ao longo do livro, nos dando uma visão abrangente das relações tão complexas entre as quatro mulheres e consegue criar vozes específicas, com jeitos e vícios, para cada uma delas.
Nessa mistura, a autora propõe uma narrativa que soa tão realista quanto absurda: as burocracias de estado, a maneira diferente de vivenciar e ver o mundo, as tentativas de sobreviver com qualidade de vida em uma cidade grande, a busca por formas de se expressar. Ao mesmo tempo que tudo soa plausível, factível, realista, tudo também soa absurdo, grotesco, desumano. Ao mesmo tempo que faz sentido que o estado cuide de pessoas com dificuldades, os limites que impõe no dia a dia dessas pessoas parecem tirania.
Apesar de a narrativa ser bastante realista, há um toque fantástico que brilha no enredo. Uma das personagens é acometida por uma doença de criação da autora, a Síndrome de Comportas: duas abas transparentes se escondem por trás do rosto da personagem, mas o cobrem assim que começa a experienciar uma situação desagradável. Podemos ver como uma materialização de alguma síndrome de comportamento, claro. Mas escapando de uma leitura diagnóstica, me parece que esse acréscimo mais fantasioso deixa a narrativa com mais força — dentro de um realismo tão absurdo, a síndrome parece completamente factível.
É por meio de ações e tentativas de expressar suas oposições que as personagens buscam criticar a estrutura à qual estão confinadas, o limite ao qual são impostas, a falta de individualidade com a qual são vistas. Marga busca nas ocupações uma moradia alternativa, Nati busca na dança e na política as linguagens para expressar sua crítica, Àngels escreve um romance, Pati está disposta a contar quando a querem ouvir.
Outro aspecto da escrita de Morales que chama atenção é como ela incorpora à narrativa palavras do campo semântico da inclusividade. O vocabulário oficial e governamental, das assistentes sociais, do meio jurídico das tutelas legais e das leis, chega na voz das personagens de maneira natural. Tendo que navegar um sistema burocrático e médico para conseguirem ter condições adequadas de vida, siglas, instituições e profissionais do cuidado e da saúde permeiam o cotidiano delas, e aparecem polvilhados ao longo de uma linguagem muito mais inventiva de um jeito coerente e rico. Por exemplo, uma das personagens só descobre que está em situação de risco e que é “diferente” dos demais quando uma assistente social a visita — e é a partir desse mundo, do vocabulário praticado por essa profissional, que ela passa a entender e descrever sua própria realidade.
Enquanto falamos sobre a linguagem de Morales, também tenho que mencionar o trabalho certeiro da tradução de Elisa Menezes. Afinal, a linguagem que estamos lendo — e que tanto impressiona — é dela também.
Como explicado pela própria María dels Àngels Guirao Huertas, a parenta que escreve seu romance no WhatsApp, “leitura fácil” é um gênero destinado para pessoas que entraram mais tarde no mundo da leitura, que não conhecem determinado contexto ou que tenham alguma dificuldade cognitiva. Assim, ao escrever seu romance, faz questão de parar e explicar siglas, situações, escolhas estilísticas e assim por diante. Muitas vezes isso pode gerar um certo tom cômico. O livro de Morales, que pode não ser nada fácil de se ler por retratar uma realidade tão dura, parece se enquadrar bem na proposta de “leitura fácil” usada pela sua personagem: mostrar, tintim por tintim, os limites dos discursos de inclusividade.