O verdadeiro artista não trabalha pelo reconhecimento, pelo elogio. Ainda que pareça contraditório — pois conhecemos a vaidade dos artistas, da maioria pelo menos —, Gao Xingjian, escritor chinês exilado na França, praticamente desconhecido até que ganhasse o prêmio Nobel em 2000, parece conseguir manter a coerência, logo ele, recebedor que foi da, por assim dizer, maior das láureas da Literatura. Para ele, muito mais afeito às aquarelas e aos palcos que à prosa — pela qual vem a ser conhecido hoje no Brasil por meio de A montanha da alma —, o escritor só pode falar em nome de si mesmo. Nunca em nome de uma segunda pessoa, quanto menos pelo coletivo. Xingjian prefere deixar os tagarelantes políticos com essa incumbência. Ou seja, o escritor, o verdadeiro, escreve para si. Se o leitor vai entender, gostar, elogiar e recomendar, esses são outros quinhentos. Talvez por isso ele diga ter encontrado na escrita a liberdade. Convém, portanto, tentar entendê-lo, ignorando o prêmio, essa fogueira de vaidades estéticas e políticas, esse lugar quente e comum.
A montanha da alma foi escrito entre 1982 e 1989, começado em Pequim e terminado em Paris. Nesse período, em 1986, seu trabalho foi proibido na China pelo regime comunista, muito mais pelo teor de sua dramaturgia inspirada em Becket, Artaud e Ionesco, então popular nos teatros chineses, que por sua prosa. Parece, porém, que a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, em 1968, e o envio de Xingjian para os campos de reeducação, onde foi obrigado a queimar uma mala de manuscritos, não esfriaram os seus ímpetos de individualidade. Ao contrário, os exacerbaram em detrimento de uma forçada coletividade torturante. Pois o que nos é mostrado em A montanha da alma — este passeio no grande espaço e no grande tempo que envolve a China — são escritos extremamente individuais, não no sentido triste do termo.
Trata-se da viagem de um homem naquele imenso território em busca de aspectos, etnias, histórias e sutilezas que aquele que vê apenas o todo, o coletivo, esse amálgama homogêneo, não consegue perceber. Muito desse personagem certamente é o próprio Xingjian, que também peregrinou pelo interior de seu país quando da repressão política. Assim, como quem constrói uma casa tijolo a tijolo, o autor constrói a sua China por meio das pessoas, dos acontecimentos, dos monumentos ou das peças arqueológicas que encontra em seu caminho. Cada um desses “artefatos” de que faz uso em sua empreitada tem sua importância em si mesmo e a si se basta em um sistema de valores em que a parte é sempre maior que o todo. É assim que Xingjian desenha a sua China, da maneira como quem decifra o próprio eu, não muito diferente do que faz o personagem de Drummond no poema O Elefante. Xingjian, porém, de uma forma mais conformada, talvez, com a incomunicabilidade entre os seres. Para ele, a literatura permite conservar a consciência do homem. Assim, outro escritor — em sua consciência outra — construiria uma China diferente, que não essa que vemos em A montanha da alma, pois os caminhos, como as pessoas, são vários, mas só se pode trilhar um.
Muita importância se deu ao fato de, em sua narrativa, Xingjian intercalar capítulos em que o narrador-personagem está em primeira pessoa, subjetivo, com outros em que um narrador onisciente, ou quase isso, trata o personagem por você, ela ou ele. Bobagem. Esse foi apenas um recurso usado, com propriedade, pelo escritor para separar momentos diferentes daquilo que narra. E, no entanto, alguns críticos chegaram a dizer que sua técnica era, até mesmo, revolucionária. Esses dois momentos, diferenciados pela alternância de pronomes, dividem, não rigidamente, o romance em China presente e em China passada. Nos capítulos em que um “você” se dirige a “ela”, vemos um contador de histórias, das antigas lendas que permeiam, e durante o período mais negro do regime de Mao permaneceram subterrâneas, mas vivas. Nos outros, os em primeira pessoa, um explorador, um escritor em busca daquilo que se preservou em forma de cultura, no seu amplo sentido, e até mesmo em fauna e flora. Ao juntar tempo e espaço, Xingjian esboça uma China como um país diferente de todos os outros, sem cair nas facilidades de um retrato de exotismo ou nos traços simples de uma caricatura mal feita.
A narrativa é sempre poética, mas lenta. Talvez isso irrite os fãs de Bruce Willis. Pode-se comparar o livro, nesse aspecto, ao filme O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, em que há ação, mas ela flui de uma maneira à qual os ocidentais não estão habituados.
Eventualmente, o escritor dialoga diretamente com o leitor — coisa a que estamos acostumados desde o tempo de Machado de Assis. A certa altura ele até explica o seu recurso dos pronomes: “Neste monólogo ‘você’ é o objeto da minha narrativa, na verdade é um eu que me ouve atentamente, ‘você’ não é senão a minha sombra. Enquanto eu ouvia atentamente meu próprio ‘você’, eu fazia você criar ‘ela’, porque você é como eu, você não pode suportar a solidão”.
Outro momento é esclarecedor, quando, ao estilo de um interrogatório o autor tenta explicar seu estilo narrativo. Neste momento, o interrogador ou crítico imaginário lhe explica que ele fez tudo errado em seu livro até aquele momento. Os personagens não são sólidos, algumas histórias não têm fim, o romance não tem um encadeamento “normal” e seu modo de escrevê-lo é um equívoco. O interrogador, a propósito, usa termos e acusações bem como deveriam fazer os funcionários do regime, embora uma leitura política de A montanha da alma seja uma perda de tempo e o desperdício de seus melhores momentos. Mesmo sabendo que a premiação de Xingjian com o Nobel foi política. Ao final, o crítico vai embora, confuso, sem resposta para suas questões, porque não há.
O capítulo em que Xingjian discute o eu talvez seja o mais explicativo em relação às suas intenções. “Ele (o eu) muda à medida que o observamos, como quando você fixa o olhar sobre as nuvens no céu, deitado na relva. No princípio, elas parecem um camelo, depois uma mulher, afinal se transforma num velho de longa barba. Nada porém é fixo, uma vez que num piscar de olhos elas ainda mudam de forma”, nos explica. Portanto, se o objetivo de Xingjian é por meio dessa viagem no tempo e no espaço da China, por meio de suas pistas e destroços, encontrar a verdadeira identidade de seu país e, na intenção última e principal, e a sua própria, é bem possível que, ao final do livro, não saibamos se conseguiu. Pode ser que nos perguntemos se, afinal de contas, o personagem chegou ou não à tal Montanha da Alma. Mas isso seria deixar de entender que o mais importante é não o ponto de partida ou o de chegada, mas o percurso que há entre eles.