Nascido em York, na Inglaterra, em 1907, viveu o desejo permanente de retornar aos braços maternos, jamais fez questão de esconder a homossexualidade e, sem incorrer numa cega adesão, teve intenso namoro com as utopias marxistas. Tudo isso nos informa José Paulo Paes, na reedição dos poemas de Wystan Hugh Auden, elaborada novamente pela Companhia das Letras. Em sua Introdução quase didática, o poeta brasileiro — que se empenhou na tradução dos textos, ali selecionados por João Moura Jr. — insiste no entanto em advertir: “Enquanto poeta, Auden é uma das mais convincentes ilustrações daquilo que os críticos costumam chamar de ‘falácia biográfica’, ou seja, o equívoco de querer explicar as particularidades da obra de um escritor pelos acontecimentos da sua vida ‘civil’ ”. Não seria exagero, portanto, salientar que o poeta inglês realiza o que Antonio Carlos Secchin atribuiu a Gonçalves Dias: no auge das práticas de confissão e dos intercâmbios entre a alma pessoal e a palavra publicada, o criador d’Os Timbiras prezava pela “despersonalização”, pelo distanciamento ao qual a imaginação prolífica servia de passaporte. Amplitude imaginativa que nunca faltou a Auden, afinal — é preciso destacar —, ele foi, mais do que um poeta, um polígrafo: dramaturgo, libretista, ensaísta e acadêmico, transitando pelos vários quadrantes que a palavra podia alcançar.
A edição bilíngue vem preencher o hiato que a obra do escritor experimenta entre nós (não apenas ele: em língua inglesa, carecemos de repor em circulação autores, dentre tantos, como William Carlos Williams, Marianne Moore, Ezra Pound ou Robert Frost). A publicação traz, como acréscimo em relação ao volume anterior, um belo, personalíssimo e afetuoso posfácio assinado por Joseph Brodsky, poeta russo naturalizado ianque. Outro mérito se deve à própria escolha dos textos — ofício escarpado, se lembrarmos que, para chegar aos trinta e nove poemas da coletânea, o organizador precisou ter parâmetros seguros para percorrer a obra de um artista incansável, que reuniu em suas obras completas nada menos do que setecentas páginas, excluídos os vários escritos do período inglês, como Moura Jr. nos dá notícia. Interrogando os critérios, vemos uma obediência e uma insurreição, ambas constituindo o sal da escolha. A obediência se dá no respeito às predileções do Auden maduro, em relação a sua obra. A infração ocorre quando alguns textos, que “o autor coibiu de ingressar na edição definitiva de suas poesias completas”, ainda assim nos são veiculados. O ato reflete a concepção legítima de que, uma vez publicados, os poemas se destacam de seu criador tanto no que concerne à interpretação quanto à valoração estética.
Lacuna importante, porém: a carência de organização dos poemas de acordo com as obras que os enfeixaram — problema que já apontamos no Rascunho de julho (número 171), a propósito do lançamento da poesia de Gérard Nerval. Ora, apontar a que reuniões os textos pertencem contribuiria consideravelmente para a compreensão do percurso estético de Auden, suas interrupções e continuidades. A própria editora apresentou esse cuidado quando pôs nas prateleiras brasileiras, por exemplo, uma recolha como a do escritor norte-americano Wallace Stevens — edição datada de 1987, que nesse momento tenho sob os olhos. E se ao amador de poesia as informações seriam essenciais, ao estudioso a divisão daria um acréscimo digno de estima. Mesmo que, naturalmente, o especialista fosse buscar esses dados em outras fontes, não vemos razão plausível para que tal conforto seja gratuitamente negado numa edição tão primorosa.
Tempo clássico e moderno
Se Auden pertence, rigorosamente, ao grupo composto por Stephen Spender, Rex Warner ou Cecil Day Lewis, sua afinidade formal com Ezra Pound e T. S. Eliot levou este último, entusiasmado, a editar Poems, primeiro livro audenesco — já portador daquilo que o autor de The waste land nomeou de “método mítico”: a inclinação para recuperar intertextualmente a tradição clássica, mas sempre a invertê-la sob o signo e a rasura da paródia (ao que O escudo de Aquiles , presente na coletânea, nos fará uma viva remissão).
Uma das características notáveis no estilo de W. H. Auden — e em sintonia com os célebres escritores do modernismo anglófono — é, curiosamente, sugerida pelos versos do primeiro poema do volume, intitulado The letter (A carta). Ali, a missiva encarna o que André Comte-Sponville considerou a peculiaridade mais pronunciada das correspondências: a existência simultânea da ausência e da aparição. O texto não promete reconciliações: “Your letter comes, speaking as you,/ Speaking of much but not to come” (“A carta, a tua voz mesma a dizer/Muitas coisas, mas não que regressas”). Percebemos, portanto, dois interlocutores em alta voltagem de afeto e carência (ao menos verificada no eu-lírico). Nesse contexto, a pessoa amada apenas sinaliza suas ações — poupando a saudade ou preparando o desenlace —, tornando-se um “Deus rústico que tem receio, sempre,/ De dizer algo mais do que pretende”. É ao cultivar a reticência de sua própria personagem que Auden dialoga intensamente com a literatura da modernidade, tão afeita às alusões de reduzida clareza que, associadas às referências eruditas e ao acúmulo de elipses, confluem para certo hermetismo, para a pouca transparência do verso. Um outro elemento que não deve ser desconsiderado na composição de tal efeito relaciona-se à própria linguagem de extração científica, flagrada recursivamente nos poemas (e aqui a observação de Paes, referente à biografia minguante na escritura de Auden, deve ser posta rapidamente em suspensão, uma vez que sua formação inicial — voltada, como salientamos, para as ciências biológicas no Christ Church College, de Oxford — dará à sua literatura essa decisiva contribuição).
Embora seja um praticante recorrente dos versos brancos e livres, o poeta inglês apresenta peças de composição melopaica modelar. É o que um texto como Lullaby (Acalanto) nos deixa amplamente entrever: marcado por um ritmo encantatório, o poema traz uma cópula verbal (Octavio Paz) permanentemente presente, e no entanto discreta — não raro com o ligeiro desvio, o surgimento súbito de uma rima toante: “away”, “grave”, “day”. Aqui, José Paulo Paes, com a sensibilidade sonora que nos é largamente conhecida, reproduz ao seu modo, lançando em lugares levemente deslocados e de maneira absolutamente compensatória.
Esse Acalanto é emblemático no conjunto que nos é posto em mãos: sustentado pela destreza do artifício, traz à baila uma temática revisitada por W.H. Auden — a do tempo deixando seus sulcos desde a infância indefesa, à qual ameaça secundado pelas febres que dissolvem a beleza e o frescor: “Time and fevers burn away/ Individual beauty from/ Thoughtful children” (“A beleza das crianças pensativas/ Tempo e febres consomem lentamente”). Poderíamos dizer que, se o assédio do tempo gera, sobre seus efeitos, uma percepção de pouco impacto, a febre a ele se alia para fazer visíveis as ameaças que os dias guardam para a carne. Apesar da força com a qual Cronos — sendo círculo ou flecha — nos fere ou desnorteia, o amor reaparece como evento restaurador, certa blindagem espiritual: “But in my arms till break of day/ Let the living creature lie, /Mortal, guilty, but to me/ The entirely beautiful” (“Mas que em meu braço, até que nasça o dia,/ Possa repousar a viva criatura,/ Mortal e culpada, e, no entanto, para/ Mim a coisa mais bela de se ver”). Nesse momento podemos fazer uma pequena ressalva à transposição para a nossa língua: se o verso original, mais estreito e conciso — o que se plasma, inúmeras vezes, a partir das palavras-valise que já víamos em Joyce, Pound ou Virginia Woolf —, confirma a atmosfera hierática da precariedade, o texto em português se estende com alguma frouxidão que dilui a aura corrosiva (o verso derradeiro dessa estrofe traz, por exemplo, uma cesura dupla e seguida que José Paulo Paes não poderá manter). O assunto, de qualquer forma, ganha um sabor mais temperado se dermos a devida atenção ao livro como objeto efetivamente estético: afinal, dificilmente nos escapará a fotografia de capa, oferecendo ao leitor o flagrante de um Auden de olhar pensativo e enigmático, mas, sobretudo, de uma pele rigorosamente lavrada pelos anos. Não há como ignorar Michel Serres: o espaço — e, nesse caso, o do nosso corpo — é uma grandeza marchetada pelo tempo (O incandescente).
A banalidade da tragédia
Como uma imagem em fractais, a tragédia de uma vida já se revela, inteira e condensada, em inúmeros eventos banais e cotidianos que, por não sabermos lhes dar o relevo que merecem (ou não o desejarmos por um egoísmo consanguíneo), são até convertidos em idílio ou doçura. É para o que Auden não cessa de nos alertar, oferecendo-nos o poema Musée des Beaux Arts como uma amostra vigorosa. Ali, já na primeira estrofe, lemos: “About suffering they were never wrong,/ The Old Masters: how well they understood/ Its human position; how it takes place/ While someone else is eating or pening a window or just walking dully along” (“No que respeita ao sofrimento, nunca se enganavam/ Os Velhos Mestres: quão bem lhe compreendiam/ A humana posição; de que maneira ocorre/ Enquanto alguém está comendo ou abrindo uma janela ou somente andando ao léu”). Já nesse instante podemos sentir o reproche: o deslumbre risonho de muitos frequentadores de museus é uma consequência da pouca imaginação, de insensibilidade frente ao fato de que aquelas paredes suportam a dor de nossa inevitável insuficiência ontológica. Se lançarmos um olhar para a data de composição, o poema cresce em dramaticidade: dezembro de 1938, a poucos meses, portanto, de outra guerra que, em pés relativamente leves (mas nem tanto, se o espectador da Guerra Civil Espanhola já inferisse os devidos corolários), se aproxima para gerar na calmaria aparente outro sismo genocida. Considerando que o texto veio a público somente no ano posterior e integrou o volume Another time em 1940, o diálogo histórico, então, passa a ser incontornável. Em medida considerável, Auden restaura o que Valéry dissera uma década e meia antes, em O cemitério marinho: a paz oculta suas atrocidades. O texto, de notável força descritiva e hermenêutica, restaura o ut pictura poiesis clássico e relata os acontecimentos presentes em quadros de Pieter Breughel (o filho), como o conhecido Paisagem com a queda de Ícaro. O desastre sofrido pelo personagem mitológico converte-se num fato banal, para o lavrador e para o barco de luxo, cada qual concentrado em suas atribuições e em seu próprio deleite. Ora, o tema é tão significativo para Auden, que no poema dedicado à morte de W. B. Yeats o mundo outra vez se mostrará indiferente à pessoal desventura, agora simbolizado na figura dos animais: “Far from his illness [de Yeats] / The wolves ran out through the evergreen forests” (Longe da sua doença,/ Os lobos corriam o sempre-verde das florestas).
No fim das contas, o leitor poderá acompanhar uma obra que vem concentrada de um teor melancólico, balanceado todavia por certa voltagem irônica e humorística, a atribuir-lhe um quantum de graça e leveza. No prólogo pedagógico, aliás, José Paulo Paes atribuía esse efeito a um choque semântico: “[…] o uso ocasional da terminologia científica colabora no sentido de dar à linguagem uma certa pomposidade, a qual, temperada aqui e ali de notas coloquiais, sobretudo expressões de gíria estudantil, gera os efeitos de humor típicos da dicção audenesca”. E esta parece ser a lição maior: a alegria possível é uma obrigação moral, já que a ruína nos assombra como elemento fatal e insiste em ser destino comum — onde os homens mais distintos se igualam. E se até o dia resulta em vítima (“o mercúrio baixava na boca do dia agonizante”), que a poesia de Auden nos ensine, em alguma medida, a saboreá-lo com febre e prudência, como certamente o faria qualquer deus rústico e reticente.