Um detetive intuitivo

“O homem dos círculos azuis”, de Fred Vargas, ganha o leitor com um estilo narrativo sóbrio e sem o excesso de cacoetes que contaminam o gênero policial
Fred Vargas: arqueóloga medievalista a serviço da boa literatura policial.
01/09/2006

Um dos defeitos mais comuns em romances policiais ruins é um certo tipo de narrador detetive caricato, que se resume a um amontoado de clichês e metáforas óbvias. Todo mundo conhece o tipo: quando vai interrogar um informante, por exemplo, o detetive diz coisas como “Se você não falar, seu cérebro vai servir de papel de parede!”. E na dúvida, ainda pergunta: “Entendeu bem?”. Muito comum também é o excesso de comparações, como “naquele momento, meu coração era como uma britadeira” ou “o olhar da garota era como uma geleira distante”.

Trata-se de uma deformação de trejeitos e maneirismos dos detetives norte-americanos dos anos 20. Mas o que era, naqueles romances, um novo tipo de cinismo, e uma nova representação dos valores urbanos, decadente e amoral, popularizou-se em uma sucessão de lugares-comuns multiplicados à exaustão. Esse tipo de detetive caricato, que existe aos montes, tanto na literatura quanto no cinema, é um dos motivos pelos quais o romance policial carece de crédito.

Outro dos motivos é a caracterização superficial de personagens. Centrado na ação, muitos acreditam que o romance policial não deve ou não precisa se preocupar com a construção dos personagens, seus conflitos íntimos e eventuais histórias paralelas à da investigação propriamente dita. Como se fosse obrigatória do gênero certa superficialidade na composição dos personagens, o que não é verdade.

Por isso, é um alento ler uma autora como Patricia Highsmith, por exemplo. Com uma escrita sóbria e longe daquelas falas-clichê que parecem piada, a criadora de Tom Ripley estava mais preocupada com a representação de conflitos éticos (ou a ausência destes conflitos) e de situações de tensão do que com a repetição de fórmulas. Não à toa, Pacto sinistro foi adaptado para o cinema por Hitchcock, com quem, de fato, tem muito em comum.

Este já longo comentário serve para apresentar a escritora francesa Fred Vargas, e incluí-la na categoria de Patricia Highsmith, ou seja, dos escritores que, mesmo submetidos a um gênero bastante marcado, ainda conseguem se manter longe dos clichês mais fáceis e caricatos, para nos dar algum ar de novidade.

Existem escritores policiais de todo o tipo: músicos, atores, chefes de cozinha, psicanalistas, filósofos, delegados e até mesmo escritores. Fred Vargas é uma arqueóloga medievalista, o que, em um primeiro momento, para o leitor desavisado que está procurando alguma novidade na estante de policiais na livraria, já é um ponto positivo. Afinal, há algo de exótico neste tipo de profissão, que pode evocar, ao grande público, enigmas seculares, análise de evidências históricas e a presença de um olhar altamente treinado para a leitura destas evidências. É claro que se trata de uma visão romântica da profissão. Mas, sem dúvida, a imagem do escritor conta muito para o sucesso comercial de um livro, principalmente ligado mais diretamente ao rótulo de “entretenimento”.

Vargas é um best-seller na França, e parece ter alcançado uma boa repercussão também no exterior: é autora de 16 livros, 15 deles lançados nos últimos 12 anos (!). No Brasil, já chegaram Fuja logo e demore para voltar (2001) e O homem do avesso (1999), sempre protagonizados pelo detetive Jean-Baptiste Adamsberg, cuja primeira aventura é lançada agora por aqui: O homem dos círculos azuis (1992).

O enredo é atraente: começam a surgir círculos azuis por toda Paris, contornando objetos aparentemente aleatórios, como tampinhas de garrafa, uma latinha de Coca, um pedaço de arame, um chaveiro, um refil de caneta esferográfica, um cocô de cachorro, um caco de farol de carro. Junto aos círculos, consta sempre a inscrição: “Ô Bento, seu azarento, na rua com esse vento?”. Motivo de piada e de suposições em todas as rodas da cidade, o chamado homem dos círculos azuis parece ser levado a sério apenas pelo delegado Jean-Baptiste Adamsberg. Ele teme que a charada acabe se transformando em um jogo mórbido, temor que, é claro, o leitor espera que se concretize. Não tarda para surgirem em meio aos círculos pequenos animais mortos e, finalmente, um cadáver degolado.

Feio e avoado
Vargas escreve bem, dedica-se muito na composição de seu detetive feio e avoado, e gosta de personagens desajustados; são eles a principal qualidade do livro, a começar por Mathilde, uma oceanógrafa meio maluca que tem como hábito seguir as pessoas na rua, e investigá-las. Dentre os excêntricos que atravessam seu caminho estão Charles Ryer, um cego muito mal-humorado e com raiva do mundo, e a velha Clémence, uma senhora bastante excêntrica que coleciona classificados de relacionamentos e encontros amorosos frustrados. Além, é claro, da insólita dupla de investigadores. A começar pelo inspetor Danglard, um dos poucos em quem Adamsberg confia, e que o acompanha em outras histórias. Bastante chegado ao vinho, Danglard possui uma rotina familiar das mais interessantes: depois de ter sido abandonado pela mulher, cria sozinho cinco filhos, com quem costuma debater os casos em que trabalha.

Já Adamsberg é um caso à parte. Via de regra, todo detetive é meio excêntrico, seja pela quase sobrenatural capacidade dedutiva de um Sherlock Holmes, seja pelo tipo durão e cínico de um Sam Spade. O detetive de Fred Vargas não é diferente. A começar pela solidão, causada por uma frustrante vida amorosa. Novo na função e um pouco “estrangeiro” em Paris, já que vem dos Pirineus, o delegado parece um ser de exceção também dentro da corporação: é avesso aos expedientes usuais de uma investigação, bem como a qualquer senso estético de como se vestir, e mantém como principal cacoete o hábito de rabiscar em uma folha enquanto interroga um suspeito ou discute o caso com seu parceiro. É assim que normalmente resolve seus casos: cabisbaixo, absorto, deixando a caneta e os pensamentos correrem livremente.

Adamsberg pertence a certa linhagem de detetive contemporâneo cujos métodos são mais intuitivos do que analíticos. Deste grupo fariam parte Bastianu, o detetive-poeta do italiano Marcello Fois, cujos sonhos guiam o rumo de suas investigações; e Espinoza, do carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, que cultiva a prática do devaneio, seja andando pelo calçadão, seja flanando pelo Rio de Janeiro em busca de um velho sebo. Isto não impede que ambos sejam detetives muito interessantes, e que resolvam seus mistérios, cada qual à sua maneira.

Mas verdade seja dita: há momentos em que Adamsberg exagera no tipo “não-estou-nem-aí”. Às vezes parece que vai solucionar o crime por acaso, como na passagem abaixo:

Adamsberg refletia de modo vago enquanto voltava a pé para a delegacia. Ele nunca raciocinava a fundo. Ele nunca conseguira entender o que estava se passando quando as pessoas punham as mãos na cabeça, dizendo: “Bem, vamos raciocinar” (…) De modo que nunca sabia de onde vinham todas suas idéias, todas as suas intenções e todas as suas decisões.

Sua resistência a um método mais analítico é tamanha que, enquanto um grupo de inspetores se reúne e analisa informações sobre o caso, o delegado sai para caminhar pela cidade, pois, “para ele, as informações não tinham nada a ver com o conhecimento”. É assim também em O homem do avesso, em que um personagem chega a acusar Adamsberg de “pensar à revelia do bom senso”, ao que o detetive responde, prontamente: “É isso mesmo. É assim que eu raciocino”. Talvez essa seja uma tendência dos policias de língua não-inglesa, mas seria preciso ler e comparar muito mais obras para afirmar com certeza.

Enfim, O homem dos círculos azuis ganha o leitor onde poucos romances policiais conseguem, na composição de personagens bastante interessantes, e em um estilo narrativo sóbrio e sem aquele excesso de cacoetes que contaminam o gênero. Mas talvez deixe a desejar exatamente na descrição do processo de investigação. Em algum lugar do caminho, a relação entre as evidências e a solução do crime se perde nos rabiscos de Adamsberg.

De qualquer modo, Fred Vargas é uma autora a se acompanhar.

O homem dos círculos azuis
Fred Vargas
Trad.: Dorothée de Bruchard
Companhia das Letras
216 págs.
Fred Vargas
Nasceu em Paris, em 1957. É arqueóloga medievalista, trabalha para o Centro de Pesquisas Científicas da França e toca acordeão. Em 1986, publicou seu primeiro romance, Les jeux de l’amour et de la mort, premiado no festival de Cognac. O homem dos círculos azuis, premiado no festival de Saint-Nazare em 1992, é o segundo livro da autora e primeiro a trazer como protagonista o delegado Jean-Baptiste Adamsberg. No Brasil, já foram publicados O homem do avesso e Fuja logo e demore para voltar.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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