Tão logo Eu sou um gato, de Natsume Soseki, despontou na longa lista de sugestões encaminhada pelo editor mensalmente aos colaboradores do Rascunho, apressei-me em me candidatar a resenhá-lo. O interesse pelo livro surgira através de uma recente resenha do jornalista Carlos Graieb para a revista Veja. Até aquele momento, jamais tinha ouvido falar em Soseki — ou, pelo menos, nunca havia prestado atenção nesse nome —, e foi uma surpresa descobrir que o romance trazia como narrador um gato, o que já era o bastante para me atiçar. Para quem não sabe, fui por muitos anos criador de gatos de raça e ainda me mantenho em atividade na gatofilia como juiz internacional em exposições especializadas. Posso portanto afirmar, sem querer ser arrogante, que eis aí um assunto do qual entendo alguma coisa. Obviamente, o fato de ter um conhecimento um pouco acima do usual nesse universo não me torna mais competente para discorrer sobre ele quando o que está em foco é a literatura, mesmo porque bichos de verdade não narram histórias. A curiosidade começava em descobrir como um escritor do outro lado do mundo, e há mais de um século, construía uma “personalidade” felina, algo inerente à criação desse exótico narrador.
Em seu artigo, Graieb traça também um interessante paralelo ao comparar o autor japonês a nosso Machado — e, especificamente, ao relacionar Eu sou um gato a Memórias póstumas de Brás Cubas, por conta, dentre outros vários aspectos, da bizarrice dos respectivos narradores. Sabe-se não ser nada difícil estabelecer diálogos e conexões entre duas obras literárias, a despeito da distância que as separe, dependendo tão-somente da destreza na argumentação. Graieb, entretanto, convence pela consistência do que propõe: “num passe de mágica, o Brasil e o Japão se aproximam: duas nações periféricas, no fim do século XIX e no começo do século XX, às voltas com o problema de importar idéias européias para uso (ou mau uso) nacional. Não atrapalha nem um pouco a comparação o fato de que os dois autores compartilharam do mesmo humor, da mesma melancolia, e da mesma deliciosa veia estilística”. Sem dúvida, uma bela apresentação — e exata, como vim depois a comprovar.
Foi portanto com avidez que me lancei às quase 500 páginas do volume, antevendo que teria uma leitura das mais prazerosas — além de instigante, como já de longe se anunciava. Tive uma segunda surpresa ao me dar conta de que a expectativa inicial, à medida que o livro avançava, tampouco se transformava em decepção, como tende a acontecer inúmeras vezes. Ao contrário, no decorrer de seus onze capítulos, originalmente publicados em série numa revista literária,Eu sou um gato me reservaria ainda outras boas surpresas que ajudaram a compreender por que essa primeira experiência de Soseki na ficção continua a ser considerada sua obra-prima.
Inteligência e mistério
O livro abre de maneira singela: “Eu sou um gato. Ainda não tenho nome”. O que, à primeira vista, parece ser apenas um começo gracioso, acaba por revelar uma inteligente porta de entrada. Em duas curtas frases, Soseki esclarece que o título não é uma simples metáfora e transfere o mistério para outro ponto: por que afinal o personagem ainda não tem um nome. A construção dessa resposta conduz diretamente à história principal: o gato-narrador foi adotado por Kushami, obscuro professor na Tóquio do início do século 20, que o acolheu em sua casa contrariando a vontade do restante da família — e, muito em particular, da voluntariosa criada Osan. Não ficam claras suas razões, mas certamente elas não contemplam uma preocupação latente com o abandono de animais, tampouco um interesse especial por bichos de estimação. Contudo, o pequeno felino vai aos poucos ganhando importância na vida de Kushami, algo de que estranhamente só as pessoas do pequeno círculo de relacionamento do professor se apercebem. E logo se mostra muito mais perspicaz e elegante que seu dono — o gato revela-se um dândi, como o definem os editores na orelha do livro. Ele acompanha silencioso as conversas do professor com as visitas que estão sempre batendo à sua porta e, a partir do que ouve, compõe um retrato magnífico da sociedade japonesa à época, com seus rígidos protocolos mas titubeante, naquele momento, entre os valores tradicionais e as novidades recém importadas do ocidente. Aí está o enredo, e não haveria muito mais a acrescentar. Mas essa urdidura, de notável simplicidade, serve apenas para dar uma direção ao suntuoso recheio: a crônica de costumes e a crítica, bem-humorada e sempre ácida, de um período importante da cultura japonesa, a Era Meiji, que coincide com a restauração da monarquia e o fim da política isolacionista em vigor nos dois séculos do período feudal antecedente, à qual Soseki, com sua estética então inovadora, tentava se contrapor.
Sobre a estética de Soseki, seria impossível para mim — bem como para a maioria dos brasileiros — avaliá-la corretamente sem confiar na tradução. Aqui não há escapatória: é acreditar ou não, visto que traduzir do japonês, com sua escrita baseada em ideogramas e não num sistema fonético, equivale, mais do que em outras situações, a uma literal reescrita. Jefferson José Teixeira apresenta para essa primeira edição brasileira de uma obra de Soseki um trabalho de tradução primoroso. Nada seria mais justo do que, neste caso, recorrer-se à idéia de co-autoria e considerar o novo texto uma versão. Assim, ainda que eu não tenha condições de apreciar sua fidelidade ao original, encontro uma prosa ágil, saborosa e quase limpa dos excessos estilísticos que, se deviam ser comuns há cem anos, inclusive no Japão, hoje talvez soassem anacrônicos. Em alguns momentos da narrativa, chega a parecer que o tempo é outro, mais atual.
Criador de tipos
Soseki é também um inspirado criador de tipos, a começar, é claro, pelo narrador que escolheu. E, assim como este, outros gatos dotados de inteligência humana aparecem na história — todos com um nome, para tristeza de nosso pequeno anônimo. Mas é nos personagens convencionais, e sem contar com nenhum recurso fabular, que esse talento fica mais evidente. Kushami, por exemplo, um homem tosco, irascível e de raciocínio simplório, perfil que certamente não condiz com sua condição de educador, mas que se abre a várias possibilidades literárias. Outro personagem fascinante (em minha opinião, o melhor deles) é Meitei, um também professor e a visita mais freqüente na casa de Kushami. Meitei é uma criatura desagradável e debochada cuja maior diversão na vida consiste em inventar lorotas homéricas e defendê-las com tal convicção que as faz parecer verdades incontestáveis, só para ter depois o gosto de fazer de bobo seu interlocutor quando enfim desmascara sua ignorância. Um personagem que ninguém leva muito a sério, apesar de ser uma presença constante, e do qual o leitor também desconfia: eis aí um outro achado.
O gato e seu dono, a quem o primeiro se refere como “amo”, são personagens que quase nada têm em comum a não ser o fato de refletir, cada um deles, aspectos distintos da própria biografia e personalidade de seu criador. Numa circunstância que lembra em muito a trajetória de nosso gato, aos dois anos de idade Soseki foi entregue pelos pais a outro casal, com eles permanecendo até os nove, quando voltou à família biológica. A propósito, “Soseki”, que não é sobrenome mas o equivalente a um prenome em português, é na realidade um pseudônimo e significa “estorvo”. O sofrimento de viver numa casa onde não se é querido — mesmo o dono devota pouca atenção a seu animal — pode muito bem traduzir o que sentia o autor na convivência com sua família postiça. Por outro lado, Kushami, de quem o mascote despreza solene e deliciosamente a estultice, é um ser refratário às mudanças sociais que estão ocorrendo no seu entorno. Ele nutre uma profunda aversão pelos “homens de negócio”, que trabalham agora para fazer fortuna dentro de um sistema subitamente aberto aos ventos do capitalismo ocidental, preferindo manter-se na pobreza mas fiel a seus valores, estes firmemente plantados na milenar cultura japonesa. Por conta de seu temperamento e da intransigência com que defende suas posições, Kushami faz inimigos contra os quais não tem condições de lutar. Na parte final do romance, ele passa por um sofrido processo de questionamento que o faz adquirir certa sabedoria, algo inimaginável a quem se acostumou a vê-lo pela ótica sempre implacável do gato-narrador. E aqui, de novo, a biografia de Soseki aparece refletida na história de Kushami: assim como o personagem, o autor também se opôs à nova onda, e isso não se deu de forma indolor. Soseki, ele próprio um estudioso e professor da língua e literatura inglesas, não conseguiu se adaptar à cultura ocidental e precisou abrir mão de uma bolsa de estudos na Inglaterra para retornar ao Japão. De resto, teve uma vida sempre atormentada, apresentando crises constantes de depressão que debilitaram sua saúde e acabaram por matá-lo em decorrência das seqüelas deixadas por várias úlceras.
Mas não se pense que Eu sou um gato seja uma leitura angustiante ou angustiada. Com todo o conflito subjacente — e suas 153 notas de rodapé, todas elas absolutamente indispensáveis —, trata-se de um texto de inegável leveza, em grande parte devida ao humor delicioso e refinadíssimo que nada fica a dever aos melhores exemplos da literatura judaica, paradigma dessa milagrosa fusão de cômico com melancólico. E do bem que sempre nos faz abrir um sorriso para a desgraça.