Os países de língua portuguesa parecem padecer de um mesmo mal incrustado em suas raízes coloniais: “desgraçadamente, Portugal espalha-se, não coloniza”. Afinal, a colonização exploratória lusitana permitiu um mesmo legado a suas colônias. Do mais belo, a língua, o patrimônio lusófono cantado nos versos de Camões e perpetuado até hoje, também pelas páginas deste jornal. Daquilo que não se pode admirar, a ignorância na aceitação de suas próprias raízes.
José Eduardo Agualusa é um escritor angolano que se recusa a fechar os olhos para si e sua história. Numa comparação grotesca, poderia ser visto como o Gilberto Freyre de Angola — país de língua portuguesa, colonizado por Portugal, deitado à costa atlântica do continente africano. Agualusa tratou de criar (ou melhor, de dar significância a) o termo “crioulo” como uma afirmação de raízes que contêm em si uma possibilidade de afirmação de valores culturais angolanos e de todas as culturas africanas e colonizadas em geral.
Sua obra mais recente publicada no Brasil é Estação das Chuvas (Gryphus, 279 págs.), uma contribuição à história da guerra civil de Angola que assolou o país de 1961 a 1975. Utilizando-se de uma mistura entre realidade e ficção, ele conta a biografia de Lídia do Carmo Ferreira, poetisa e historiadora angolana misteriosamente desaparecida em Luanda em 1992, após o recomeço da guerra civil. O narrador, jornalista que tenta descobrir o que aconteceu a Lídia, reconstrói sua saga desde o começo do século, recuperando a história proibida do movimento nacionalista angolano.
A história contada por Agualusa possui inúmeros pontos de afeição aos admiradores da língua portuguesa. Ler o português de um país irmão é tomar posse, de alma, de sua verdadeira história. Os acéntos abertos do português lusitano que servem para fechar o fonema na língua falada no Brasil; o texto de tradição oral, repleto de cantigas, poemas e fábulas, que nos transporta para um sarau de declamações ao sotaque luso. Tudo, enfim, em Estação das Chuvas nos leva a perceber como temos um elo de coração, como afirma o timorense Prêmio Nobel da Paz, José Ramos-Horta, com os países lusófonos.
O cenário conflituoso é mais do que um pano de fundo para a história de Lídia. Ele pode ser considerado um personagem onipresente, que afeta a história da heroína e também a de seu narrador. Pois enquanto o jornalista vê seu mundo sendo tomado pela loucura, compreende que o destino da desaparecida Lídia não está muito distante do seu. Porque mesmo Agualusa, nascido em Huambo (cidade do planalto central de Angola) pouco antes do início da guerra civil, acabou por ver com seus próprios olhos os castigos dos conflitos naquele país. Como mesmo tendo ido estudar agronomia em Lisboa, acabou se tornando jornalista, em seu livro relata a história de maneira inquietante e atrativa — catártica, enfim. A guerra, implacável, fornece sempre momentos de glória e terror. Nas palavras de Gabriel García Márquez: “Era una guerra atroz, en la cual habia que cuidarse tanto de los mercenários como de las serpientes, y tanto de los cañones como de los canibales.”
Conflitos políticos são outro mal assola igualmente os países de cultura portuguesa. Houve em Angola, houve no Brasil, houve, recentemente, em Timor Leste. E, tomando conhecimento da literatura de Agualusa, percebe-se que o fio que une países da língua portuguesa não é somente o verbo de Camões. Por isso mesmo Agualusa, hoje vivendo no Brasil, procura ressaltar a importância da veia africana em nossas raízes.
Raízes do Brasil
José Eduardo Agualusa nasceu em Angola, em 1960, estudou em Lisboa e hoje mora no Brasil. Já ganhou o Prêmio Sonangol de Literatura, em Angola, pelo livro A Conjura; o Prêmio de Jornalismo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; e o Grande Prêmio Literário RTP, de Portugal, pelo famoso Nação Crioula, que descreve o contato entre Fradique Mendes (personagem anteriormente utilizado por Eça de Queiroz) e Ana Olímpia Vaz de Caminha no fim do século XIX através de Luanda, Paris, Lisboa e Rio de Janeiro.
O escritor conta que certa feita, em 1997, a convite da Bienal do Livro de Pernambuco, esteve no Brasil. Ao tomar um táxi, o condutor estranhou seu sotaque:
— De onde o senhor é?
Agualusa respondeu que era de Angola. E o taxista:
— Angola?, perguntou admirado. E em que Estado fica isso?
O escritor, pacientemente, respondeu que Angola era um país com onze milhões de habitantes, na costa ocidental da África, exatamente do outro lado do Oceano Atlântico onde também se fala o português.
— Verdade? Pensei que só no Brasil se falasse português…
José Eduardo Agualusa utiliza esse episódio para justificar como o brasileiro médio desconhece a África e, assim, suas próprias raízes luso-africanas. Ele argumenta que a figura do negro no Brasil continua associada à escravidão e à pobreza, de modo que a tendência do brasileiro é escamotear sua origem.
No artigo Noticiário Cultural, publicado em 18 de novembro de 1998, o colunista e cronista do jornal O Público afirma que “o Brasil necessita de redescobrir a África na vitalidade da sua cultura moderna, pois só assim os brasileiros de origem africana poderão recuperar o orgulho e a dignidade”. Afinal de contas, a herança africana está arraigada à formação da nacionalidade brasileira. Não é por acaso que as manifestações da cultura nacional mais celebradas lá fora são a música popular, o carnaval e mesmo a literatura de Jorge Amado, cita o autor.
Agualusa acredita piamente que a união entre os países lusófonos não induz a simples identificação de características culturais em comum, mas também ao fortalecimento mútuo dos países. “No seu espaço geográfico, a América Latina, o Brasil destaca-se como o país melhor colocado para refazer os laços com África pois (…) em África há cinco países de fala portuguesa, todos eles formadores da identidade brasileira, e todos, sem excepção, de coração aberto relativamente ao Brasil”, escreve.
Mas cinco séculos depois do aporte de Cabral na Bahia, estamos à espera de novas descobertas, ou melhor, redescobertas. Agualusa afirma que Portugal tem procurado o contato com a África. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, os portugueses do século XXI, lá da península ibérica, conhecem melhor hoje o continente que desbravaram intensivamente durante o período colonial. Como um exemplo de intermiscigenação, Agualusa cita a obra do pesquisador brasileiro José Ramos Tinhorão O Fado: Canção Lisboa, Dançar do Brasil (Editorial Caminho, Lisboa) que, à procura das raízes do fado, tipicamente português, descobriu que a origem da canção é afro-brasileira.
Ou seja: o cenário da lusofonia está se completando. Para isto, nas palavras de José Eduardo Agualusa: “Neste cenário falta apenas que o Brasil assuma plenamente o seu destino lusófono e que lance, mar afora, à descoberta de Portugal e da África que fala português”.