Um leitor do século 21, do ano de 2010, talvez ache difícil a leitura de A educação sentimental, de Gustave Flaubert. Linguagem muito rebuscada? Palavras difíceis? Orações truncadas? Exageros experimentalistas? Não, não. Simples: o leitor de hoje está acostumado com uma linguagem rápida, com textos em que predominam o enredo e, às vezes, a superficialidade. Por conta de nossa vida corrida, agitadíssima, o leitor de hoje não tem tempo para leituras que demandam mais que alguns minutinhos. Não é por nada que o leitor de hoje prefere os textos breves. O leitor de hoje não está acostumado às descrições fotográficas dos romances naturalistas e realistas. O leitor de hoje está mais acostumado aos textos caóticos, fragmentados. Será que o leitor de hoje é mais preguiçoso ou apenas fruto de um contexto com suas peculiaridades?
A cena inicial do romance A educação sentimental, de Flaubert, é a seguinte: em 1840, no cais, um navio prestes a partir sobre as águas do rio Sena. Mas essa seria a descrição de um autor contemporâneo. Como não é o caso, Flaubert descreve a cena de forma a forçar o leitor a enxergar aquele espaço, aquele ambiente, aquele tempo — tudo em seus detalhes. Frederico Moreau, um rapaz de 18 anos, é um dos passageiros. Na viagem, ele trava amizade com Jacques Arnoux, rapagão dos seus 40 anos e proprietário da revista Arte Industrial. Entre as passageiras, Frederico se interessa — coincidentemente — pela senhora Arnoux. Eis o ponto de partida, a cena inicial, a introdução do romance.
No capítulo II (os capítulos não são curtos), entra em cena Carlos Deslauriers, jovem de 22 anos, amigo de Frederico desde os 12. No capítulo III, entra em cena — mas logo desaparece, e depois volta novamente — o Sr. Dambreuse, um rico industrial francês. No capítulo IV, entra em cena o boêmio Hossonet, que ambicionava a glória e os lucros do teatro. Num entrar e sair de cena de vários personagens, surgem: Pellerin, um pintor de esboços, apesar dos seus 50 anos, e Regimbart, que ia de botequim em botequim beber, comer e jogar bilhar, entre outros, importantes ou não para a narrativa.
Após todos os personagens em cena, o que prevalece no romance é o retrato da sociedade e das cidades francesas do século XIX, a narração — com certa ironia — das relações (sempre de interesse?) humanas e as descrições dos personagens. Todos são bem ou razoavelmente bem descritos, tanto fisicamente como em seus traços de personalidade. Um dos mais bem desenhados por Flaubert é Jacques Arnoux:
Com seu furor de lisonjear a opinião pública, desviou de suas vocações os artistas de talento, corrompeu os fortes, esgotou os fracos e deu glória aos medíocres; tudo isso podia fazer graças às suas relações e à sua revista. (…) Recebia dos confins da Alemanha e da Itália uma tela comprada em Paris por mil e quinhentos francos e, exibindo uma fatura que a elevava a quatro mil, revendia-a por três mil e quinhentos, para obsequiar.
Jacques Arnoux, um fanfarrão (poderíamos dizer), provoca ódio e ao mesmo tempo admiração em Frederico, o protagonista. Ódio porque além de imoral e cara-dura, ele é esposo e ama — o que é pior — a Sra. Arnoux, por quem Frederico se apaixona. Admira Jacques Arnoux exatamente porque ele ama, verdadeiramente, sua esposa, apesar de traí-la viciosamente. Além do mais, Arnoux é um boa-praça. É uma boa alma. É um burguês. É um capitalista. É alguém que acumula e, pouco tempo depois, perde sua fortuna. É um tipo comum em meados do século 19 em Paris. Mas, apesar de complexo, Arnoux é coadjuvante em A educação sentimental.
Enriquecer
Quase toda a narrativa gira em torno de Frederico e seus dramas, o principal dos quais sua ânsia por enriquecer e querer freqüentar uma sociedade que, sem dinheiro, não freqüentaria. Entremeio a esses dramas burgueses, após algum tempo em Paris, ele volta à província, sua cidade, onde estava sua mãe. Por lá ficou alguns anos e conheceu a menina Luisa, filha do Sr. Roque, homem rico que desperta o interesse da mãe de Frederico e, mais tarde, do próprio. Mas enjoa da província e dos provincianos e volta, então, à capital, à Paris. Em Paris, Frederico acumula, faz questão de esbanjar com seus requintes e, então, é assediado, financeiramente falando. É vítima de muitos interesses. Todos, direta ou indiretamente, pedem dinheiro para ele.
Embora apaixonado pela Sra. Arnoux, mulher mais velha e casada, muitas vezes Frederico se vê desestimulado em suas investidas. De raiva, às vezes promete a si mesmo nunca mais voltar à casa dos Arnoux, o que acontece em alguns momentos. A fim de tentar desviar seu pensamento da Sra. Arnoux, Frederico se interessa por outras, essas mais fáceis. O fim do primeiro volume é exemplar. Frederico, após algumas tentativas e indiretas inúteis, se desilude da Sra. Arnoux. Chega em casa e se depara com uma carta de Marechala (amante de muitos) lhe sugerindo novas esperanças e uma boa oportunidade de instigar ciúmes na Sra. Arnoux. Será sua vingança. Será mesmo sua vingança?
Nesse romance, as cenas e as reviravoltas proliferam, os personagens vão e voltam, e tudo parece dar no mesmo — em nada. Inclusive o amor de Frederico. Amor inútil, infértil. Frederico parece não se sentir totalmente satisfeito com nada. Sua falta de confiança o embaraça. O receio de cair no desagrado dos outros o apavora. Ele é como as mulheres honestas, que têm medo de serem descobertas e passam a vida de olhos baixos. Num momento do romance, apesar de Frederico estar numa condição confortável, financeira e socialmente, ele reflete:
…lembrou-se dos dias já longe no passado em que invejava a felicidade indizível de se achar numa carruagem ao lado de uma daquelas mulheres. Estava de posse daquela felicidade, e nem por isso se sentia mais alegre.
É a eterna insatisfação humana. Há pessoas, e Frederico parece ser um bom exemplo, que fazem de tudo (desde que sem muito suor) para se satisfazer e cumprir os seus objetivos, a maioria dos quais satisfaria à visão da sociedade sobre elas, e não exatamente a elas. Não é uma luta para si e por si mesmo; é uma luta por outrem. Flaubert parece, em alguns momentos, querer nos dizer: no final, independentemente do que fazemos, tudo se direciona para o mesmo lugar — para o vazio —, e continuamos da mesma forma que antes: vazios.
Não pense o leitor que tudo é dito assim de forma explícita, como os narradores contemporâneos o fazem. Não. Os narradores do século 19 não gostam de aparecer tanto. São mais sutis (o que não quer dizer que são melhores). Na maioria das vezes é nas entrelinhas que o leitor percebe (ou não) os significados da obra, as suas críticas, a sua ironia, a perspicácia do narrador. É preciso atenção. É preciso tempo. Porém, são coisas simplicíssimas como essas que o leitor contemporâneo não possui. Pela falta de tempo e de paciência não lê obras fundamentais da literatura. Não lê os clássicos. Não lê os monumentos literários. Conforma-se com o supra-sumo da superficialidade literária, que é auto-ajuda travestida de literatura. É a vida.
A vida em detalhe
Há momentos saborosos em A educação sentimental, como no capítulo I da Segunda Parte, em que há uma narração/descrição, detalhadíssima, de uma festa de pessoas influentes, ou que se consideram importantes e/ou ricas. Das vestimentas até as bebidas, dos tiques até os bigodes, dos assuntos até alguns pensamentos, das paredes até os móveis – quase nada passa despercebido pelo narrador, que quer-porque-quer fotografar o ambiente e lugar, de forma a facilitar (ou dificultar) para o leitor. Outra cena interessante é a narração, em mais de quatro páginas, de um duelo, que não aconteceu. Final — da cena — divertidíssimo.
A educação sentimental é local de burgueses, arrivistas, socialistas fracassados, boêmios, senhoras de família, moças de pouca virtude, operários, pequenos burgueses, senhores ricos e pedantes. As relações de interesse são, no romance, escancaradas. Idéias — dos personagens — pululam, a maioria das quais não passa de idéias. As revoluções fracassam. O sistema é — sempre — mais forte do que as idéias revoltosas, infelizmente (ou não). Alguns personagens se vêem, no final, falidos e humilhados. É a vida. Mas é a vida em seu mínimo detalhe. Não é a vida contemporânea, rápida e superficial. Caótica e fragmentada. As mais de 400 páginas de A educação sentimental são para leitores pacientes, que estejam dispostos a viajar.
Enfim, Flaubert, com seu romance, entre outras coisas, cria um belíssimo (mas ora irônico, ora maldoso) e detalhista retrato da sociedade, das relações humanas, das paisagens, dos costumes e das cidades francesas do século 19. É começar a lê-lo e automaticamente deparar com a França de meados do século 19. É uma viagem. Boa literatura normalmente é uma viagem, mas uma viagem de corpo e alma, e não uma viagenzinha que nem marcas deixa. A educação sentimental não é para leitores/pessoas que passam pela vida de olhos baixos, com medo de se aprofundarem em si mesmos, nas coisas, na vida. É para os outros, para aqueles que trocariam a leitura de dez obras contemporâneas ruins, superficiais, rápidas (das que passam despercebidas) por esse romance lento, bom, complexo em suas tramas, longo. Longo.