Churchill hoje, além de nome de charuto, é, para nós, uma figura distante, perdida em algum ponto da Segunda Guerra Mundial. E se o político — um dos maiores atores do século 20 — já adquiriu a opacidade típica das figuras históricas, o que dizer do outro Churchill, o memorialista, o historiador? Relançamentos de seus escritos costumam fazer barulho no Brasil, possivelmente ecoando disputas pró e contra os conservadores atuais (a anos-luz dos seus antecessores ingleses de há quase um século, diga-se de passagem). Pois não poderia ser diferente, em termos de repercussão, com o seu Grandes homens do meu tempo, em que talvez estréia no Brasil ainda outro Churchill — nem o político, nem o estrito historiador —, o autor de perfis. Lógico que mistura aí sua vivência no parlamento e a experiência na Primeira Guerra (a Segunda ainda não havia eclodido); e claro que esse Great Contemporaries (o título, em inglês, original) antecipa os temas e as personagens dos longos tomos acerca do fatídico episódio entre 1939 e 1945, editados em 1948.
Mas qual o interesse, para o brasileiro médio, que naturalmente não acompanha a história da Inglaterra e que abre, com um tédio mortal, as páginas de política internacional (quando não nacional) dos principais jornais? Acontece que Churchill, além de personalidade-chave, a partir da primeira metade do século anterior (e depois), foi um grande escritor. Seguiu uma tradição, hoje quase extinta (com exceção, talvez, do recentemente falecido Lord Roy Jenkins, aliás biógrafo de Churchill, do qual se edita agora um elogiado Roosevelt), de homens que, à maneira de Marco Aurélio e Júlio César, aliaram os despachos do dia-a-dia, e muitas vezes a guerra, a um registro de fatos com apuro praticamente literário. Churchill é dessa estirpe.
Lê-lo, portanto, mais do que se aculturar sobre eventos idos e vividos, é passear por elegantes lições de sabedoria, tendo como base a observação arguta, redundando sempre num estilo preciso, ainda que a inspiração nem sempre tenha se pautado por ações nobres ou mesmo por contemporâneos cujo exemplo se possa considerar modelar. Sobre Leon Trotsky, por exemplo, Churchill é taxativo: “Qual um câncer, cresceu, nutriu-se, torturou e matou para satisfazer sua natureza”. Chegando, inclusive, ao requinte de condená-lo a um futuro tenebroso e intranqüilo: “Ninguém pode lhe desejar castigo maior que uma vida longa, e que sua aguda inteligência e seu espírito inquieto possam atormentar um ao outro pela impotência e pela frustração”.
O tom crítico, embora atinja píncaros assim, não é o predominante. Ainda que guarde pérolas, como esta, dirigida a outro herói das esquerdas (e da intelectualidade dos 1900s), Bernard Shaw: “Ele é, ao mesmo tempo, um capitalista ganancioso e um sincero comunista”. E apontando em seguida, imperdoável, suas mais arraigadas contradições: “Poucas pessoas fazem o que pregam e ninguém o faz menos do que um Bernard Shaw”. Mas reconhecendo, também, seu charme, mesmo estranhando seus hábitos (saudáveis avant la lettre), Churchill observou: “Fui instantaneamente reduzido pelo brilho e graça da sua conversa, além de impressionado com o fato de alimentar-se só de frutas e legumes, e beber só água”.
Óbvio que nem só de opinião pessoal vive o livro, até porque Churchill, em perspectiva, cometeu erros graves de avaliação — ou deixou marcados pontos de vista fatais, para si e para o mundo. Como o faux pas sobre Adolf — por enquanto desarmado e um pouco menos perigoso — Hitler: “(…) um funcionário altamente competente, tranqüilo e bem-informado, de maneiras agradáveis e de um sorriso que desarma”. Quer dizer: ninguém duvida que o Fuhrer fosse assim, mas causa certo desconforto constatar o deslumbramento do célebre primeiro ministro. Nesse e em outros deslizes, porém, Churchill deve ser perdoado: afinal, redigiu a maior parte dos perfis no período entre guerras (décadas de 20 e 30 do século passado), e não poderia prever, como ninguém aliás, que os desdobramentos fossem aqueles que hoje conhecemos.
Grandes homens de meu tempo não se sustenta por meio da futurologia, evidentemente. E ainda que o Churchill furibundo, na superfície, seja bastante divertido, o melhor Churchill é indubitavelmente o proverbial: “Tinha aquele instinto natural que penetra nas palavras e coisas” (sobre Lloyd George); “A imensa variedade de temas dos quais ele parecia possuir a chave-mestra é uma fonte de inesgotável deslumbramento” (sobre Kipling); “Parecia exatamente o que era, um dos príncipes da natureza” (sobre Lawrence da Arábia). E, por último: “Se você é o cume de um vulcão, o mínimo que pode fazer é fumegar” (sobre Alfonso XIII).
A exemplo de seus predecessores, Churchill teve uma educação modelar, enriquecida por cultura vasta, de onde se permite concluir que seus lampejos de sabedoria, ainda que temperados pelo talento de escritor, tinham sua fonte entre autores ingleses da melhor qualidade. Testemunha disso, são as citações encaixadas com habilidade entre os relatos. Quando, revisitando Kitchener, evoca, digamos, Byron: “Melhor soçobrar na colisão/ Que decompor lentamente em terra”. Ou quando, sob o pretexto de rememorar novamente Lloyd George, retoma Carlyle sobre Cromwell: “Ele buscava o lugar. Talvez o lugar lhe pertencesse”. Ou ainda quando, apelando justamente para um de seus contemporâneos, Clemenceau, encerra magistral: “Sou um homem lidando com os acontecimentos na forma como eles se apresentam à minha experiência”.
Sim, a sensação, inúmeras vezes, é a de que Churchill, contando dos outros, fala, na verdade, de si próprio. Chegando ao ponto, até, de incluir-se como personagem nas histórias. Mencionando, por exemplo, uma opinião de Baden “be prepared” Powell, o inventor do escotismo, sobre ele próprio (Churchill): “Falar com você é como falar com um fonógrafo” (talvez ressaltando, para o leitor, sua fidelidade, ao menos auditiva, aos fatos). Ou, então, exaltando indiretamente seus pares, colegas da Câmara dos Comuns: “Em um país governado por um parlamento, os bem falantes conquistam naturalmente as posições de relevo”. Ou, para terminar, disparando um dardo que atingiria em cheio a nossa era de predominância do audiovisual: “A mente primitiva pensa mais facilmente em imagens que em palavras”.
Por mais que se discorde hoje de sua herança política, não há como não reconhecer que Sir Winston Churchill pertencia a outra raça de homens. E que, mais talvez do que isso, pertencia a um breve período, de bonança inigualável e aparentemente incessante, numa Inglaterra que havia dominado o mundo e que, ainda, se mantinha poderosa, rica e influente no cenário internacional. Uma era de ouro, que — nos confirma o perfil inicial — coincidiu com a ascensão e queda da Rainha Victoria. Ainda que o leitor brasileiro não se interesse por assuntos como a Guerra dos Boers, a batalha do Marne, o massacre de Paschendale, vale a pena revisitar essa atmosfera perdida nas brumas, a mesmas dos great contemporaries de Churchill.