Buriti, árvore que se espalha pelo sertão. Presente em todo o Brasil central, essa palmeira elegante é o vegetal mais citado na obra de Guimarães Rosa, cujo célebre romance — Grande sertão: veredas (1956) — evoca a poética imagem das veredas, caminhos de buritis. A paisagem do cerrado brasileiro impregnado dessa vegetação foi a trilha escolhida por Paulliny Tort para ambientar os doze contos de Erva brava. Mais que ambientação, Buriti Pequeno é também o nome da localidade fictícia no estado de Goiás em que transcorrem as narrativas.
O conjunto marca a estreia da brasiliense, autora do romance Allegro ma non tropo (2016), na narrativa breve. Na maior parte dos escritos (à exceção de A mulher do pombo e Mandiocal, mais esquemáticos), podemos dizer que Tort acerta em cheio, atingindo “uma hora aguda e intensa da percepção”, como pontua Alfredo Bosi sobre o referido gênero no discurso ficcional.
O quase sufocamento nos grãos em um silo de soja, a parteira que socorre mulheres no mato ermo, a mãe que rememora o último adeus da filha morta, a percepção da natureza arruinada pela enchente — todos são momentos dramáticos, no âmbito individual ou coletivo, surpreendidos pela autora no volume. A escolha por ambientar todos os relatos nessa Buriti ficcional resulta em uma organicidade palpável, e como leitores entramos pouco a pouco na intimidade do lugarejo, com seus dramas, mazelas e pequenas alegrias. E então Buriti fica perto, ao alcance da mão.
Choque de gerações
Por meio de uma linguagem precisa, Tort explora o pertencimento a um Brasil profundo em Erva brava. Mas não se trata apenas de uma mirada nostálgica sobre o passado, no lamento do tempo perdido. Buriti Pequeno é um lugar de contrastes. De um lado, o interior impregnado de referências do sertão mítico, marcado pela religiosidade sertaneja e por matrizes culturais em constante entrecruzamento. De outro, a modernização e suas garras. A ambiência se dá, portanto, entre preces e conhecimentos tradicionais e as parabólicas que capturam um universo inteiro a invadir os pobres casebres. Um Brasil que passa na TV.
Em Como nascem os sinos, de extração memorialista, um antigo sineiro se empenha na missão de ensinar o ofício ao sobrinho-neto:
E pouco importa que não tenha ritmo e outros atributos, se for preciso, Tonico repetirá com o aprendiz cada dobre e cada repique milhares de vezes, até sangrarem as mãos, até falharem os dedos, até que o aprendiz aprenda, porque alguém precisa aprender.
Os quintais e morros muito azuis vistos do alto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos são a ambientação para o encontro entre duas gerações. Uma, empenhada em transmitir a experiência e a importância dos marcadores do tempo, outra, apressada em ganhar os cinquenta reais prometidos pelo tio, ouvindo de forma desinteressada a explicação sobre ritos e ciclos da vida. Alguém quer ensinar, outro alguém pouco interesse tem em aprender.
Esse desencontro aparece também em Má sorte, em que o nome bíblico pouco importa para quem carrega a alcunha. Ezequiel é chamado com urgência a uma fazenda de soja para desentupir o silo bloqueado pelos grãos úmidos após a chuva. De repente, se vê preso em meio a uma montanha de grãos empilhados que acaba de desabar, correndo o risco de morrer sufocado pelo peso das sementes.
Apesar do nome de profeta, o rapaz não prediz nenhum futuro. Seu sonho imediato é comprar uma antena parabólica com o dinheiro ganho na tarefa ingrata: “A soja quer mastigá-lo, engoli-lo, o que é irônico porque você nunca provou desses carocinhos, não faz ideia do gosto que têm nem conhece quem os tenha provado”. Devorado pelo mundo do trabalho e pelos grãos nunca experimentados, o jovem escuta o próprio nome chamado pelos bombeiros no momento do resgate, a um passo da morte.
A cidade pequena já não equivale ao bucolismo, lugar ameno de pura paz. Lá estão também aqueles que ficaram para trás, como esse profeta sem antevisão. Os falhados. Uma sociedade violenta se dá a ver nos relatos de Tort, como na imagem do rio Amanuaçu, antes límpido, agora lugar de dejetos, água podre a receber, na calada da noite, o corpo de mais uma vítima do passeio noturno de um citadino que se compraz em exterminar “viciados”.
Pesadelo dos deserdados
Também figuram os deserdados da terra, expulsos do seu lugar de origem. Em O cabelo das almas, o personagem Chico e sua família se deslocam da pequena propriedade rural em troca de mísero valor que dá para comprar “uma TV, uma parabólica e um sofá”, palavras da própria esposa. Como moldura, o sonho de que os filhos migrem para Brasília ou Goiânia, eterna sina de fabianos, severinos e macabéas, estirpe dos que irão vivenciar aspectos da urbe que os atrai e ao mesmo tempo repele. Ou, para lembrar a frase do narrador de A hora da estrela (1977), viver em “uma cidade toda feita contra ela”.
Dos buritizais líricos, míticos e terríveis de Rosa e do Buriti Pequeno de Paulliny Tort emergem a presença das águas, dando vida e pujança ao sertão, mas transformada em pesadelo. A força de Rios voadores fecha o volume, trazendo a água em formato de violenta enchente, que desmancha a terra e carrega consigo homens e bichos, equiparados no desamparo. Abrigada na igreja local, a população assiste ao desmonte da cidade. Uma espécie de epílogo a anunciar tempos turvos, em que a relação predatória com a natureza e o descaso dos governantes convoca o final de aviso e alerta.
“É de uma velocidade impressionante, a enxurrada. Arrasta cobras, pacas, escorpiões, manobra por entre os troncos das árvores, desvia das rochas, arranca a terra crua do chão. Aonde tem tanta urgência de chegar, não sabemos”, reflete uma testemunha da devastação.
Entre mundos
Não à toa, ao longo das narrativas nos deparamos com gente que reza: às vezes por entre os lábios, outras com palavras gastas, ou mesmo sem fé. Mas há sempre por ali um murmúrio, um pedido, uma benção. Roga-se a um Deus que raramente responde, mas que de alguma forma se materializa em cada canto. Almas, espíritos e presenças imateriais povoam essa prosa, e os resíduos da tradição persistem no imaginário local, como os ternos espectros que rondam a cidadezinha à noite. Mas eles fumam crack.
Os personagens se equilibram entre um mundo que já não é e outro ao qual ainda não pertencem. Um pé na erva brava e outro na agroindústria. Como no belo Santíssima, narrado em primeira pessoa pela parteira local. Ciente do descaso das gentes da vila, a protagonista guarda enorme sabedoria. Eis uma chave possível para compreender o convívio entre o que já foi e aquilo que está por vir, embalado pelas águas: “Gosto de barriga grande, redonda, cheia feito açude em época de chuva. Gosto de barriga de mulher gorda, que é naturalmente forte e larga. Porque, no fundo, eu gosto de qualquer barriga”.
Os contos evocam esse mundo de mulheres sábias no cultivo das ervas e da vingança contra a opressão masculina, e solidárias ao desamparo das companheiras, auxiliando a chegar a vida de onde menos se espera. Porque as vidas severinas seguem brotando.
Os contos de Tort mergulham nesse Brasil que pulsa no interior, de um sertão que é também o mundo. A guinada da literatura brasileira contemporânea em direção a esses territórios, presente em romances como A cabeça do santo (2014), de Socorro Acioli, Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior, e O ausente (2020), de Edimilson de Almeida Pereira, para ficar em poucos exemplos, demonstra que há muitas dessas histórias para contar. Basta querer olhar para elas.