* Os livros de Juremir Machado da Silva, analisados neste texto, foram editados pela Sulina, de Porto Alegre (RS).
Aos quarenta anos, já com uns quinze volumes editados e inumeráveis crônicas, críticas, reportagens na imprensa, o jornalista Juremir Machado da Silva não se micha e lança agora cinco livros, compactos. Tem opinião sobre tudo e a redação fácil, não raro exata. Positivo e negativo é que baste sentar no computador para vir mais, mas sempre Juremir. No ensaio, perde em diálogo; na poesia, em lirismo; na ficção, nos personagens; tudo continua muito ele. Como é inteligente, convida; como não muda, enfara.
Comecemos pelo ensaio, As tecnologias do imaginário. Por dentro do tema, refere 20 autores, não só em frases isoladas, mas dando a direção do que pensaram sobre os assuntos. No acúmulo, se embaraça o que visa dizer, o ponto a que quer chegar, pena porque vez ou outra consegue oferecer esse ponto com clareza, tornando meio dispensável tanta informação. Sua posição nem contra nem a favor da atualidade e do imaginário que conforma nas pessoas, através da mídia, filmes, políticas, tem, quando exposta direta e simplesmente, momentos exemplares, como na orelha do volume. O texto depois se embaralha um pouco, mas pela orelha se sabe o que visa.
E tem clarezas como esta das páginas 72 e 73: “Cada vez que alguém vai ao psicanalista se pergunta: quem sou eu? Esse reconhecimento da estranheza em relação a si, marca de uma identidade fragmentada, ou, mais precisamente, da inexistência de identidade, sinaliza o imaginário. Quem somos? De que somos feitos? Até que ponto somos reais, claros, identificáveis? Até que ponto somos uma construção, uma imagem em movimento, um filme, um olhar sobre nós mesmos? Diante do espelho, sempre nos surpreendemos um pouco. Sentimo-nos atraídos pelo estranho que nos contempla com ar curioso. Nunca saberemos quem realmente somos. Mas temos certezas imaginárias que nos orientam, consolam, guiam. Nada mais ilusório do que a verdade sobre o homem. Nunca saberemos por que estamos aqui. A grande pergunta da filosofia — por que existe algo em vez de nada? — foi respondida por uma ironia: porque sim”.
Conversa em parte, já que cada um funda o seu porquê, especialmente um Juremir. Além de a par de tudo, leu tudo ou parece, e nem precisava. Suas citações são mais para apoiar ou refutar o que outros disseram do que para partir delas, revivendo-as, ampliando-as, ou seja, mais como um professor que um escritor. Roça o acadêmico, e os excessos verbais soariam melhor falados que escritos, especialmente ao dizerem o mesmo de várias formas, à Rui Barbosa, corrijo, a oradores ou pedagogos. E o vezo professoral de repetir ocorre também na argumentação, no ensaio, que retoma seguindo idéias já expressas. Como há também frases e resumos cumpridores, pensa-se que um Juremir falando menos seria mais Juremir.
Isso vale para suas crônicas no Correio do Povo: dão às vezes no alvo, mas em boa parte não evitam a facilidade verbal e a redundância. Que trate de se dar plano e rigor, já que é um dos maiores talentos com que contamos. E se As tecnologias do imaginário não amenizam a leitura, se impõem pela amplitude e o nível da atualização cultural.
Atualização que tenta abranger inclusive a poesia. E a de um ás, Baudelaire. Pois não é que o jornalista, levado pela profissão a uma língua popular e moderninha, nos surge com 84 versões de poemas das Flores do mal, quando, que se visse, nem versos avulsos já publicara!
Sua tradução aproveita versões anteriores como conta, mas pretendendo atualizar os versos magníficos, e ainda mais magnificados pelo tempo de glória, com o emprego eventual da expressão jornalística de hoje, o que na prática lhes tirou em geral a poesia. Tenta equilibrar isso com a defesa do texto no comedido prefácio e, sobretudo, nas entusiasmadas orelhas do livro — ele é bom de orelha. Para a generalidade que não entende a poesia, pode até equilibrar e verem no livro um êxito pelo contato mais direto, ainda que poeticamente traidor, com a visão da vida e da arte do francês. Mas “Étoile de mes yeux, soleil de ma nature” dar, por imposição da rima, “Estrela dos meus olhos, sol da minha poeira”, empoeirou. “Que j’ai gardé la forme et l’essence divine/ Des mes amours décomposés” se transforma em “Que eu guardei a forma divina e a essência inermes / Do meu amor em decomposição”. Ora, forma e essência inermes ainda não se tinham visto e seria mais fiel amores desfeitos ou desfigurados.
A uma passante, de que gosto a ponto de há tempos ter traduzido, tem o fecho “O toi que j’eusse aimée, ô toi que le savais” aberto em “Ó tu que eu teria amado, ó tu que não ousou”, trocando a fina psicologia por um erro gramatical.
Menos de perdoar ainda é o quarteto da última capa, porque nela, e inaceitável. “Como um navio que se espelha/ no vento do novo dia,/ minha alma sonhadora aparelha/ um céu de utopia.”
Tem mais. Mas há acertos, como “Plains-moi!” por “Tem dó!”, e o endosso como típico do melhor dessa tradução “pós-moderna”.
Vamos às novelas, que pedem desculpas já no título geral de Mitomanias. Começo por Ela me disse adeus, surpreendido com o descaramento e observações brilhantes. A pornografia vai se acendrar adiante, mas olhem que agudeza nas 30 páginas iniciais, embora depois tenha menos vez com o texto ocupado em ir adiante, se encorpar em novela.
“Prefere um mau argumento a perder a última palavra numa discussão, o que chega a lhe dar torcicolo.
Não queria filosofar, apenas exercer o seu dom inigualável de implicância.
Linda como falésias ao primeiro golpe do crepúsculo, seja lá o que isso queira dizer.
Se estão vazios, não apresentam o menor sinal de angústia ou ressentimento. A vida parece-lhes uma bela sacanagem.
Se você não consegue me manter na linha, desista. (Noutras: me satisfaça ao ponto de não o trair…)
Com gordo e com puto não dá para discutir. Perde-se inexoravelmente.
Riu, um riso grotesco, um riso de trator engasgado, um riso de mais de 130 quilos.
Matar deve ser bom, pois quem começa não pára mais. As religiões não passam de superstições que detonam o pouco cérebro da canalha.
Divagava. Nem as bundas o atraíam. (Mas me pergunto: mesmo divagando, será possível?)
Displicente e abrupta como uma curva à frente dos carros.
Não fosse o pio indiscreto de um passarinho, o silêncio o teria sufocado.
Com a gula de um aspirador de pó de última geração.”
Haja inteligência. E a novela, o drama dos personagens a que dá nomes e tenta individuar? Um cirurgião desiste de operar — é um nojo — para ser homeopata, ou seja, como o informado autor sabe, enganar os pacientes. De médico, só tem uma secretária que o detesta e assim mesmo ele, que também a detesta, lhe dá sem um motivo um aumento de 40% no salário; já se vê que o autor não admite não passar por mão-aberta… Sua amante é dada como professora de economia, mas os dois só trepam e pensam em trepar, a economia é tão inexistente como a medicina. Fazem de tudo, com preferência por trás; creio exista uma justificativa psicológica, por trás é mais defloramento ou posse. Ambos sonham com paus enormes, não necessariamente de negrões que têm essa fama, mas basicamente. E as mulheres do autor nem notam a dificuldade de ação por trás, tanto em entrar como em gozarem; invariavelmente morrem de prazer. Mas mesmo o autor acaba cansando, ou a novela atingiu um tamanho discreto, e surge sem aviso um assaltante, que estupra e joga do terceiro andar a mestra de economia genital. Ela morre e, depois de dois desmaios como se médicos fossem histéricas de Charcot, ele chora: ela nem me disse adeus…
Novela, ou que extensão tenha a ficção, acontece se se criam personagens vivos, coerentes no agir, como na realidade. Ébrio de si mesmo, Juremir não desce do auto-altar, de onde de fato vê muita coisa bem em homens e mulheres. Como as lucidezes transcritas, mas não novela, não personagens. No fundo, ele discorre sobre a sua vida de relações, exagerando um pouco ou muito para ser interessante, humorístico, e, na sobra, ainda se sair com uma novela. Não se sai. Como o atilado repórter que é e sempre foi, pega justos flagrantes, mas ainda não dei com quem estime sua ficção. Pelo menos não é fácil ir ao fim de alguma delas; só dá Juremir e acaba enchendo.
Mas quem sabe? Ele não cansa de tentar, não cansemos. Passo a outra das três ditas novelas, Nau frágil.
O homem segue falando, e como! Do chulo ao filosófico, na verve pronta, o dom da locução não se detém. Um novelista escreve uma novela, ele três… É sentar e escrever, mesmo sem se dar o tempo de imaginar gente em ação, novela. Vejam um exemplo de mero papo entre dezenas de outros: “Histérico repetia: tudo inverossímil, tudo inverossímil… Generosos os deuses resolveram concordar com ele (eu também: PHF). Na atmosfera plástica do avião, elevou-se, suave e quente, uma voz de celulóide (eu: uma voz, na plástica, de celulóide?). As time goes by. Esmoreceu. Deus era um romântico anacrônico. Caiu prostrado de tanta paz (não estava histérico). Já tinha a consciência insuportável de um homem; vibrava com a gelatinosa consciência de ser uma personagem. Já não existia para o futuro. Renascia num passado que lhe era estranho. De repente tudo lhe era permitido, posto que era uma ilusão”.
Com tudo, de repente, permitido ao alter ego do autor, esse não se faz de rogado, concede-se extravagâncias nos atos que refere ao lembrar que faz uma narrativa. Passe o improvável porque o negócio é falar e persistir o brilhante Juremir. A seguir: “Velas desfraldadas, ansiava pelas correntes do oceano. ‘Anseava’. No Velho Mundo pretendia encontrar o novo, o porto da redenção, a rota do Oriente, o itinerário das especiarias, as curvas de Zanzibar, uma corrida sem freios entre Paris e Dacar. Para escapar ao naufrágio, precisava de muito tempero. ‘A paixão se alimenta de fome’”.
Na obsessão de falar se conluiam outras obsessões. Entre elas, a das palavras, distorcendo-as, reinventando-as, de modo às vezes aceitável — “suspairava”, “esmoleceu” —, outras, bem menos —“trocadalho do carilho”; a obsessão turística e geográfica, a do leitor dos pensadores franceses de hoje, a da obscenidade, central em “Ela nem me disse adeus” e, aqui se repetindo, no autor. A genitália, abrangendo boca e rabo como o próprio Freud reconheceu, é sua expressão de fundo, se não a caricatura que gosta de se fazer. Assim, são muitos, a existirem para o sexo ou para dele se defenderem. Freud chegou a pensar que todo o mundo e o nosso MD Magno leva isso a sério. Mas não, obtempera a moderna psicologia: são apenas alguns casos, embora a vibração seja geral. Não me deixam mentir as mil revistas pornográficas, programas de tevê, filmes, até escritores de primeira como o Vargas Llosa do Elogio da madrasta.
Mas, em matéria de pornografia, não é de dispensar Juremir, entre outras, pelo enfoque especial que dá à bunda. Não estranhem porque ela é um fato. Promessa de volúpia, prazer na liberação, transa, parte importante nos dias de homens e mulheres. Falar dela não é in, mas Juremir tem a coragem: “Uma bunda de romper a língua, queimar os fusíveis, uma bunda que pretendia cabalizá-lo, apossar-se dele, privatizá-lo, dar-lhe tratamento vip num shopping center doméstico, asséptico, acarpetado, hospitalar, sem traumas, com camisinhas de morango, cereja e maçã. Uma bunda remédio para todos os males, inclusive o da comichão no cu (como? Difícil, mas Juremir se deixa levar). Bundas podem extraviar um homem, filosofou. A perdição total, porém, consiste em desbravar sempre a mesma bunda (talvez pelo trabalho de buscar outras). Fodido por uma bunda, carajo, fodido por muitas”. O protagonista, morto no fim para soar novela, acaba “perfurado com 25 projéteis, calibre 38. Entrou bala até no buraco de defecar”. Já se vê que até na morte o autor segue fiel à anatomia.
Mas também à crítica literária (Por que Diadorim virou jagunço? — boa pergunta), ao repórter dos mais distantes ambientes, dos campos de futebol aos bairros históricos ou miseráveis, dos restaurantes às academias, da política regional à global, vista em regra na piada, enfim o mundo. Novelas? Antes todas essas coisas e até um segundinho novela. Ele próprio sabe, embora, como é natural, não queira saber publicando novelas. Como costuma, define-se muito bem nas orelhas: “‘Mitomanias’ nunca perde o fio das coisas absolutamente terrenas, deliciosamente vividas, intensamente praticadas, irremediavelmente sofridas, estranhamente cantadas, fétidas de tão reais: um jorro, uma artilharia de todos os calibres, o canto do vinho na alma das garrafas, o retrato de uma época em recortes de jornais ou em imagens de televisão. Brasil, 40 balas. Folia!” E é isso mesmo. Pobre leitor. Haverá o que agüente?
Depois dessas duas novels, digamos assim, tenho de dar um tempo antes de pegar a terceira. Acabo pegando, não resisto a Juremir. É o autor de A miséria do cotidiano, A noite dos cabarés, especialmente Visões de uma certa Europa, em que reúne entrevistas com vinte pensadores mundiais, dialogando com eles, perguntando certo por lhes conhecer a obra, em suma uma inteligência fecunda e múltipla. Essas tentativas de ficção eventualmente a comprovam, com pontos de vistas e frases penetrantes, como algumas das citadas, indo fundo e com arte. Pode-se concluir que no autor o ficcionista segue um caso, ou seja, um talento que não se achou. Mas sem dúvida um caso excepcional.
…
Eu sabia, não resisti. No dia seguinte, já estava lendo Adiós, baby, e a mais novela das três Mitomanias. Falsa, mas ao menos seguindo a fórmula do gênero policial, com detetive, crimes, confusões. Há um roteiro com reviravoltas a mostrar que o autor se julga capa de produzir um romance policial. Se se enganou, tornou-se mais legível.
Os personagens mal saem de sua mente; se falam, é como ele. E o diálogo é o punctum dolens do romance; só soa autêntico, se os personagens existirem por si, além de figuras imaginadas no computador. No longo texto, só há, com folga, um diálogo válido, a partir da página 76, com uma adolescente: “— Pelo jeito, você passa todo o mundo em revista! — Não gasta, né, tio?”
A trama não se fecha. Há meia dúzia de improbabilidades. René, o detetive, recebe um tiro na beira do rio e cai n’água; morto? o protagonista não pode morrer no começo do romance e quem morre é quem atirou; supõe-se que atingido por algum outro bandido, não vai ser esclarecido. Seguranças do bando, práticos no homicídio, mostram ao policial todo o secretíssimo negócio do tráfico de cocaína, além da execução de três agentes de outro bando, e deixam que se vá; como? “Estavam turbinados. A cocaína tem a capacidade de gerar distúrbios psicóticos e alavancar surtos de megalomania” (p. 127), só que os seguranças foram descritos em plena normalidade. A solução dessa e outras contradições vai vir no fim? Fique esperando… O que vem são novas mortes, inexplicadas como as anteriores.
Em Adiós, baby, apesar da tentativa policial, o autor segue com seus comentários e piadas na ponta da língua. “Compreendeu que essa era a sua última noite. Restava saber se isso era mau. Devia ser, pois raramente se apegava ao fio da vida com a ingenuidade de um paciente desenganado” etc., etc., p. 112. O pobre a ponto de ser chumbado e Juremir não tem piedade, lhe empresta reflexões. Não satisfeito, faz o seu Renê Casa das Malhas, opa, René (com acento agudo, como se francês) Malhas, envolver-se com livros de Kant e, eventualmente, Schopenhauer, numa falta de respeito com o gênero policial.
Mesmo assim, desta vez ele tenta contar uma história, que, ainda que emperrada por suas gozações e referências de jornalista, tem o suspense típico da novela de se querer ficar sabendo o que enfim vai acontecer.