Um cascudo que sabia escutar

Meninotas e piazotes, algumas pessoas têm nomes estranhos mesmo. Veja esse Câmara Cascudo.
01/04/2001

Meninotas e piazotes, algumas pessoas têm nomes estranhos mesmo. Veja esse Câmara Cascudo. Até conhecê-lo, eu achava que câmara era pneu de bicicleta ou máquina de fotografar e cascudo era um tipo de peixe. Mas esse moço, Luís da Câmara Cascudo escreveu 160 livros. Todos baseados nas histórias do povo brasileiro que alguns insistem em chamar de folclore, essa palavra feia, mas que, na verdade — se formos pensar bem e deixar nossos pensamentos bem atijoladinhos um em cima do outro — é uma palavra feia mesmo. É como essas histórias devem ser chamadas? Azar. Acho feio e pronto. Passei da idade de querer agradar os outros.

E dá para escrever tanto livro na vida? Dá. Antes eu não sabia nem se dava para ler tanto livro na vida. E o segredo de Câmara Cascudo para fazer isso foi tão simplesmente saber ouvir. Saber ouvir as pessoas que tinham tantas histórias para contar. Aí ele anotava, registrava, estudava, comparava, tirava suas conclusões e escrevia. Pelo jeito são histórias que não acabam mais: 160 livros!

Algumas delas foram lançadas em uma coleção chamada Contos de Encantamento (Editora Global). São histórias como A Princesa de Bambuluá, Couro de Piolho, A Princesa e O Gigante, Maria Gomes e O Marido da Mãe d´Água.

O Marido da Mãe d´Água é uma de minhas preferidas. É a história de um pescador que está sem sorte e sobre quando, uma noite, ele encontra a Mãe d´Água, uma moça linda que faz ele pegar um montão de peixes e se livrar da fome. Aí ele se apaixona por ela e é quando tudo começa a complicar… Sabe, uma das coisas que ajudou para eu gostar da história foram as ilustrações da Cláudia Scatamacchia (eita! mais um nome diferente!). Ela desenhou uma moça tão bonita que até eu quase me apaixonei…

Uma das coisas que eu acho legal desse negócio de escutar e depois escrecer para os outros lerem é registrar uma coisa que passou de pai para filho. Essa história da mãe d´água por exemplo, Câmara Cascudo ficou sabendo de um homem chamado Antonio Alves, de Natal, no Rio Grande do Norte. Certamente, ele ouviu a história pelo pai dele, que ouviu do avô, que ouviu, do bisavô, que ouviu do tataravô até chegar no tatatatatatata (fique mais uns dez minutos fazendo tatata) tataravô. Isso sem incluir as filhas, as mães e as tata (fique mais uns dez minutos fazendo tatata) tataravós.

São pessoas que existiram como você e eu. Várias delas tiveram um cachorro. Outras tiveram gatos. Umas gostavam de café. Outros gostavam de pão. Umas sorriam sempre, outras choravam de vez em quando. Mas acima de tudo, são pessoas que existiram, respiraram como todos nós e pisaram na terra e, através dessas histórias, deixaram um pouquinho delas conosco, através do trabalho desse Câmara Cascudo.

Eu também adorava ouvir histórias quando era criança e ainda gosto. Mas eu lembro que, às vezes, nos fins de semana minha bisavó ia dormir lá em casa. E a coisa que eu mais gostava nesses dias era domingo de manhã. Como toda criança eu acordava cedo para aproveitar o dia de folga. Aí eu ia direto para debaixo das cobertas da minha bisa e pedia para ela me contar histórias de índio. Ela viveu em Laranjeiras do Sul. Foi muito rica. Casou com um tio dela aos 12 anos. Ele tinha uns 40 para mais. Coisas de antigamente. Depois, ela perdeu todo o dinheiro. Essas coisas acontecem na vida da gente.

Mas, na época, tinha muito índio por lá. As distâncias eram longas e sempre se viajava ou de cavalo ou de carroça. Um dia, os índios cercaram a carroça da bisa. Ninguém sabia o que ia acontecer. Parecia que tudo ia ficar complicado. Será que os índios iam devorar todo mundo? Não sei. Só sei que minha bisa foi a primeira na região a ter uma vitrola (é como um CD-Player, mas tem um trombonão que parece uma flor para sair o som. Bem, mais ou menos isso).

Ela tirou a vitrola do meio da bagagem e botou um disco para os índios escutarem (não precisava de eletricidade. Era à corda). Aí foi pior. Não queriam mais deixar ela ir embora. Ou ela teria que deixar a vitrola, que era muito cara e que os índios não sabiam ligar, ou teria que ficar ali, morando com eles. Nesse meito tempo, a carroça estava parada, tinha criança chorando e até homem brabo com medo. Bem acabou o espaço. É melhor você mesmo acabar essa história, né? Tá bom? Então, tchau! Se eu lembrar, mês que vem eu conto como tudo isso acabou.

Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho