Um Cândido contemporâneo

Com leveza e ironia, Leonardo Sciascia remonta o poder corrompido na Sicília da Segunda Guerra
Leonardo Sciascia, autor de “Candido, ou uma história sonhada na Sicília”
30/01/2015

A fumaça do cigarro esconde traços de um rosto que, num primeiro momento, aparece embaçado. O fio da fumaça é um elemento constante que acompanha Leonardo Sciascia em suas investigações literárias e jornalísticas, caracterizadas por um estilo inconfundível: uma escritura seca, essencial, eficaz e, ao mesmo tempo, irônica e culta, que atrai e provoca curiosidade no leitor.

Um olhar atento e penetrante que procura indagar o que acontece a seu redor. Olhos densos e famélicos por questionamentos que possam levar a indícios dos entremeados fios das relações, visíveis e invisíveis, na sociedade, e que podem influenciar a vida e o percurso de um habitante qualquer. O olhar clínico de Sciascia penetra a fundo a sociedade siciliana e, por conseguinte, a italiana.

O autor foi um dos primeiros a tratar da complexa organização da máfia siciliana como um fenômeno não folclorístico. Máfia cujos tentáculos se estendem para além da organização em si, para além das fronteiras da Sicília: uma imbricada relação de poder que envolve ainda cidadãos comuns, políticos e membros da própria igreja católica. Mais do que um tema, a máfia é um meio que permite a Sciascia refletir a partir e sobre a sociedade italiana, como um microcosmo que passa a operar em dimensões maiores.

Logo após as primeiras publicações com foco na máfia, na década de 1960, foi-lhe atribuído o título de mafiólogo — título, contudo, recusado inúmeras vezes, pois o autor não se considerava e não era um estudioso do fenômeno. Mais do que estudo de campo, o que é chamado de máfia, o imbricado conjunto de relações de poder, foi algo que pertenceu ao vivido do prosador italiano. Nas suas palavras: “Sou simplesmente alguém que nasceu e viveu em uma cidadezinha da Sicília ocidental e que tentou sempre entender a realidade que estava ao meu redor, os acontecimentos e as pessoas”.

Crime sem clímax
Leonardo Sciascia é, sem dúvida, um dos maiores narradores da segunda metade do século 20 na Itália, com vários volumes publicados no Brasil, conforme constatado na segunda fase da pesquisa Literatura italiana traduzida no Brasil. Na década de 1980, a Rocco foi a primeira editora a divulgar seus romances policiais por aqui — O dia coruja e A cada um o seu, ambos recentemente republicados pela Alfaguara.

Sem dúvida o tempero dado pela pitada do policial atrai um leque variado de leitores. Todavia, é bom lembrar que se trata de um pretexto. De fato, a estrutura clássica do gênero — a relação de Sciascia será intensa com Poe, por exemplo — será colocada à prova, desestruturada, remontada pelo autor siciliano, mesmo quando mantendo os clássicos papéis de vítima, detetive e culpado. A grande diferença está no fato de que não importa mais chegar ao culpado, e talvez essa informação já se tenha — ela ronda a atmosfera da trama, mesmo que não seja de forma declarada, explícita. O clímax não é, portanto, a descoberta, mas todo o processo da investigação em si. Todas as pistas, indícios e “assinaturas”, que podem receber leituras diferentes, são considerados na mesa de operação ou laboratório da investigação.

Dentro da tradição literária italiana é importante lembrar os nomes de Alessandro Manzoni, Luigi Pirandello, Vitaliano Brancati e Alberto Savinio. Se vamos além das fronteiras italianas — e, como sabemos, uma literatura se faz por meio de contato e contágio —, os nomes de Montaigne, Stendhal (“o adorável Stendhal”), Voltaire e Borges não podem ser esquecidos.

Agora, bem no finalzinho desse conturbado 2014, a Berlendis & Vertecchia, na prestigiosa Coleção Letras Italianas, acaba de lançar mais um título de Sciascia, até então inédito no Brasil: Candido, ou uma história sonhada na Sicília, publicado originalmente em 1979, dez anos antes da morte do autor. Um texto intimamente relacionado à sua época, mas que pode ter muito a dizer ainda hoje para os dois países em questão: a Itália, língua do texto de partida, e o Brasil, língua do texto de chegada.

Indagações
A década de 1970 é conhecida na Itália como anni di piombo, um período em que a tensão política beira o caos, com uma série de ataques terroristas, com a luta armada e tantas manifestações que invadem as milhares de praças na península. Um momento delicado, de crise, que deve ser lembrado, mesmo a grosso modo, para tentar entender melhor a complexa rede na qual Candido se insere.

Em 1974, já tinha sido publicado o famoso texto de Pasolini conhecido como articolo delle lucciole — que recentemente foi retomado pelo historiador da arte Georges Didi-Huberman —, no qual o poeta e cineasta tratava de um novo fascismo silencioso, dado pela nova ordem política e econômica. Do ano seguinte, assinalo alguns acontecimentos importantes: em junho, a entrada de Sciascia na política — é eleito nas municipais de Palermo (Sicília); no início de novembro, morre Pasolini, em circunstâncias ainda hoje não totalmente esclarecidas. Três anos mais tarde, em março de 1978, Aldo Moro, secretário da Democrazia Cristiana, um dos políticos mais influentes da Itália, relido por Sciascia nas páginas de L’affaire Moro (1978), foi sequestrado e morto.

A história de Candido Munafò inicia em um momento bem específico. Ele nasce na noite do desembarque americano na Sicília, ou seja, noite que marca a divisão entre o período fascista e o momento pós-fascismo. Candido, nas páginas do escritor siciliano, vai sendo delineado como um “mostro” por não compartilhar alguns hábitos — o compromisso hipócrita, as relações falsas (inclusive as familiares). O personagem tem como “fiel companheiro” um preceptor um tanto peculiar, Antonio Lepanto, que foi padre e deixou a igreja para fazer parte de uma outra: o partido comunista. Candido e Antonio apresentam duas formas de se relacionar e lidar com a sociedade na qual estão inseridos. Se para Antonio a possível “salvação” está dentro da estrutura do partido, para Candido essa mesma estrutura passa a ser indagada com todas as suas incongruências, máscaras e contradições.

Antenado às lições do século 20, a leveza é um traço dessa obra. Com sua sagaz ironia, Sciascia percorre nessas páginas as decepções, as mentiras, as aparências e múltiplas faces do poder constituído. Sem dúvida, há muito do célebre Candide (1759), de Voltaire, mas esse é só um ponto de partida, pois o alvo de Sciascia não muda: continua sendo o clientelismo, os compromissos entre quatro paredes, os compromissos ideológicos e, enfim, a máfia. Candido é, portanto, uma leitura desconfortante, incômoda, em que a todo momento vibra um tom destoante, que pode estar em consonância com os nossos tempos atuais.

Candido, ou uma história sonhada na Sicília
Leonardo Sciascia
Trad.: Maria Gloria Cusumano Mazzi
Berlendis & Vertecchia
125 págs.
Leonardo Sciascia
Nasceu em Racalmuto, em 1921. Foi um intelectual poliédrico: escritor, ensaísta, poeta, jornalista, professor de escola e político italiano. É uma das grandes figuras da segunda metade do século 20 italiano e europeu. Algumas de suas principais obras traduzidas em português são: O mar cor do vinho, Portas abertas, 1912 +1, O dia da coruja, A cada um o seu, Todo modo. Faleceu em Palermo, em 1989.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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