De gorro e casaco preto, Patti Smith caminha pelas ruas do bairro nova-iorquino Greenwich Village rumo ao seu café favorito, o Café’Ino. Ela senta à mesa de sempre, é atendida pelo garçom de sempre, e fica ali sonhando com a chance de construir seu próprio café e com viagens que vão lhe garantir grandes experiências. O único problema é que, um dia, tudo isso vai acabar. Linha M, novo livro da artista norte-americana, é isso: sobre desejos e sobre a tentativa de conservar momentos para a eternidade. Patti está pedindo que as coisas e as pessoas que ama durem para sempre.
Patti Smith é cantora, escritora, ilustradora, e uma das artistas mais influentes da história do rock, com sua fusão entre música e poesia punk. Barulhenta, inteligente e expressiva, a arte de Patti recebeu influência dos escritores beatniks, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, de bandas como Rolling Stones e The Doors, e, especialmente, do cantor Bob Dylan. Em 1975, Patti lançou seu primeiro álbum, Horses, com produção de Jonh Cale, que causou extremo impacto com um som único e interpretação dramática.
Linha M nos diz que ela é mais. Ao mesmo tempo em que é um tanto melancólico, o livro representa a história de alguém que ama cada pedaço da vida. O Café’Ino, palco de tantas cenas relembradas na obra, funciona praticamente como um personagem. Ele serve, em algumas situações, como um gancho para que Patti nos apresente sua atmosfera particular. Era um lugar onde ela gostava de ficar, para tomar café, escrever, observar, pensar. Sua relação de amizade com o garçom do estabelecimento — a quem ajudou de maneira inesperada — e até mesmo o ciúme que tinha da mesa onde sempre fazia questão de sentar (a mesma que aparece na foto da capa) são peças iniciais que ajudam o leitor a visualizar uma alma generosa e inspiradora.
Patti já publicou alguns livros de poesia e o clássico Só garotos — que venceu o National Book Award — em que relata sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe. O novo livro é reflexão e entrega, um relato extremamente humano e comovente. Nele, temos a oportunidade de conhecer viagens, sonhos, a paixão pela arte e pela literatura. Mas, apesar do tom de reminiscência, não seria suficiente chamar Linha M de um livro de memórias. Ele se enquadra melhor como um diário artístico, intelectual e afetivo.
Estico as pernas e fico contemplando Zak cumprir suas tarefas matinais. Ele nem faz ideia que eu já sonhei em ter um café. Acho que essa vontade surgiu com leituras sobre a importância dos cafés na vida dos beats, dos surrealistas e dos poetas simbolistas franceses. Não existiam cafés onde eu cresci, mas havia nos meus livros, e eles floresceram nos meus sonhos.
Sonho
O primeiro relato do livro é sobre um homem que aparece com frequência nos sonhos de Patti: um vaqueiro, de postura desafiadora, que nos diálogos desses devaneios sempre discorda dela ou a ameaça. Ele lhe diz que “não é tão fácil escrever sobre nada” — algo que ela dá impressão de desejar no início do livro. De certa forma, essa ideia permeia os textos da autora, que volta e meia menciona seu “ir a parte alguma”, “fotografar o nada”, talvez um indicativo de uma maneira errante de registrar sua vivência. O vaqueiro é o elemento provocador nos seus pensamentos. Nas suas primeiras aparições, já é possível observar como Patti gosta de pensar nos significados dos sonhos. Não só a eles, mas também dar sentido a pequenas eventualidades e coincidências do cotidiano. Os objetos perdidos, alguma pretensão que não deu certo. Tudo isso quer lhe comunicar alguma coisa. Ela fica matutando sobre o significado de tudo o que lhe acontece, aceita o recado e compreende. Era para ser assim.
Fotografia e viagem
O livro intercala os textos confessionais com várias fotografias dos lugares por onde a autora passou, fotos dela mesma e de Fred — seu companheiro que aparece diversas vezes nos relatos. Depois que conheceu Fred, ela abriu mão inclusive do sonho de ter um café, seu café “sem música e sem cardápios” para embarcar em diversas viagens com ele. Tudo registrado nas fotos. Está ali entre as páginas a imagem do bangalô que ela tanto desejou, uma casinha que acredita ter sido feita para ela. A Casa Azul, local habitado por Frida Khalo e Diego Rivera no México, também estiveram no seu roteiro de fotografias. E, claro, também está registrada a imagem da sua mesa favorita no Cafe’Ino. Outras passagens importantes para Patti são as visitas aos túmulos de alguns artistas favoritos, como Jean Genet e Sylvia Plath.
Apesar do tom de reminiscência, não seria suficiente chamar Linha M de um livro de memórias. Ele se enquadra melhor como um diário artístico, intelectual e afetivo.
Em uma das viagens, ela participou do encontro de um clube científico em Berlim, o Continental Drift Clube (CDC), criado no início dos anos 1980 e que funcionava como uma agência independente da comunidade de geociência. Tanto a história da admissão de Patti como membro do CDC quanto sua participação na conferência do clube são grandes momentos do livro, e ajudam a mostrar a devoção com que a artista trata os assuntos que lhe interessam.
Patti é extremamente interessada nos detalhes das obras de arte. Essas viagens não eram apenas passeios, faziam parte de alguma missão que ela estabeleceu para si — geralmente envolvendo algum sonho dela ou de alguém. Uma das primeiras viagens que ela menciona com Fred, por exemplo, é também uma oportunidade de realizar um desejo do ídolo Jean Genet, poeta e dramaturgo francês. Patti encontra sempre uma maneira de transformar a viagem em uma experiência artística e espiritual. É como se, para ela, a arte fosse uma missão.
Sentei no degrau improvisado do que seria minha varanda depois da reforma e imaginei um quintal com flores silvestres. Ansiosa por alguma permanência, acho que eu precisava ser lembrada do quanto a permanência é passageira.
Literatura
Linha M também nos permite conhecer muito do gosto literário da autora e a importância que a literatura tem na sua vida, para além da influência dos beatniks. Linha M tem um capítulo inteiro sobre Haruki Murakami, em que Patti conta sobre como a leitura do escritor japonês a comoveu. Silvia Plaf, Emily Brönte, Roberto Bolaño, W. G Sebald e outros tantos escritores colaboraram na formação de Patti como uma escritora de extrema inteligência e sensibilidade.
“Wonderful world”
A autora vai ficando mais reflexiva ao se aproximar do fim do livro. Ou somos nós, leitores, que já estamos completamente mergulhados naquele mundo maravilhoso nas páginas finais. Um tanto fascinada pela melancolia, Patti consegue nos convencer da beleza da reflexão e da inquietação interna. Com ela aprendemos o valor dos lugares por onde as pessoas amadas passaram, e que a canção What a wonderful world, se tocar de repente no nosso lugar preferido na cidade, pode emocionar além da conta. “Nosso jeito de viver parece em milagre”, ela comenta sobre a relação com Fred. Como o marido de Patti costumava dizer, “nem todos os sonhos precisam ser concretizados”. Os sonhos podem ser realizados por outras pessoas, podem apenas nos ajudar a encontrar um significado para a vida, podem simplesmente virar uma grande memória. A Linha M é o trem da memória.