Um brasileiro com licença para matar

Apesar de alguns deslizes, “A boneca platinada”, de Álvaro Cardoso Gomes, diverte e cria no leitor uma saborosa tensão
Álvaro Cardoso Gomes: literatura de entretenimento de qualidade.
01/02/2008

A literatura, ao longo do tempo, ganhou várias funções e utilidades. Hoje se presta ao protesto, à doutrinação ideológica, ao panfleto, ao delírio. Muitos autores, dando-se ao direito da renovação e da criatividade muitas vezes duvidosa, usam e abusam da literatura e da paciência do leitor. Eles sempre esquecem uma das funções básicas da literatura, o divertimento. Mas possível unir entretenimento com qualidade? Claro, e os exemplos poderiam fazer uma lista quase infinda.

O novo livro de Álvaro Cardoso Gomes, A boneca platina, não chega a ser um romance literariamente bem acabado. Comete deslizes de continuidade e muitas vezes se perde em chavões e cenas óbvias, mas diverte e cria no leitor certa tensão saborosa. Prende e envolve quem busca a leitura como um exercício do prazer. E isso já é um bom caminho.

O enredo conta as aventuras do investigador Douglas Medeiros e seu parceiro, Bellochio, para desvendar o duplo assassinato de um travesti, Andreza, e do fotógrafo com quem namorava. No caminho vivem abundantes emoções paralelas. Resgatam vítimas de criminosos em potencial, invadem favelas, lutam com desafetos, sofrem perseguições automobilísticas, se angustiam e amam, amam muito.

Medeiros foi desenhado pelo autor como um policial perfeito. Sem ambições, inteligente e frio. Ele quer somente fazer seu trabalho da melhor maneira possível. É um personagem chapado, como todos os outros que surgem no romance. Todos entram ali com a função específica de retratar sem profundidade aquelas pessoas que conhecemos bem dos jornais e da vida cotidiana. Os estereótipos chegam até na certeza de impunidade. Medeiros, apoiado aí, parece mesmo carregar, como James Bond, uma permanente licença para matar.

Outros dois paralelos entre Medeiros e o agente secreto britânico são o sexo e a corrupção. Nosso investigador é um inveterado e infalível conquistador. Namora mulheres belíssimas e com elas tem momentos de intenso prazer. Álvaro Cardoso apimenta bem seu texto na descrição dessas cenas, como na democratização das ações corruptas. Quase todos os personagens são corruptos. Os policiais que oferecem proteção remunerada, os políticos fazem indizíveis negociatas e até mesmo as prostitutas e os travestis negociam as informações e chantageiam. Medeiros, claro, passa ao largo de tudo isso.

Em alguns momentos, Álvaro Cardoso Gomes parece traçar o painel da sociedade brasileira, mas este é um moral desbotado, feito com as cores de uma sociologia óbvia. Corrupção, sexo, violência, miséria, droga, injustiça social, indiferença da elite. O autor, no entanto, utiliza estes elementos para chegar mais rápido ao seu objetivo. Ao oferecer um quadro já tão íntimo ao leitor quer deixá-lo somente envolvido com a trama em si.

É também para envolver o leitor que Álvaro oferece poucas pistas do assassino durante o romance. Apega-se bem ao estilo de Agatha Christie e só no finalzinho do livro, numa conversa entre o policial e o assassino é que tudo se revela. Mas uma leitura atenta já desvenda toda trama bem antes disso, antes mesmo de se chegar à metade das mais de 400 páginas escritas.

Outra arma usada na conquista do leitor são as referências culturais e temporais. São vários os casos políticos e policiais recentemente explorados nos jornais que aparecem no texto. Também constantemente o autor cita filmes e livros de sucesso. Aliás, Medeiros é um anti-herói que parece surgido das páginas de clássicos policiais como Mickey Spillane, Dashiel Hammet e Raymond Chandler.

Com todos estes elementos em mãos, Álvaro Cardoso quis, e conseguiu, fazer uma literatura de entretenimento. Explorou até mesmo o lado mais banal da psicologia ao modular algumas fragilidades em seu anti-herói. Ele também sofre de ciúmes da ex-mulher, é submisso à mãe e se martiriza com a morte de um grande amor.

Embora um pouco tardiamente, Álvaro inscreve seu A boneca platinada na galeria daqueles livros para serem lidos durante as férias, quando não se tem compromisso com nada além do prazer. E isso é bom, pois dá aos leitores a oportunidade de ler por diversão. Também nos deixa muito longe de autores tipo Paulo Coelho que se dizendo sérios não vão além da mediocridade.

Agora é esperar as próximas férias e as novas aventuras de Douglas Medeiros, pois seu criador já deixou abertas todas as portas e janelas da continuidade.

A boneca platinada
Álvaro Cardoso Gomes
A Girafa
416 págs.
Álvaro Cardoso Gomes
Nasceu em Batatais (SP), em 1944. Formou-se em Letras Vernáculas pela USP. Foi professor visitante na Universidade da Califórnia, Berkeley e Writer in Residence no Middlebury College, Vermont. É autor de mais de sessenta livros de ficção, ensaios acadêmicos e de literatura infanto-juvenil. Entre eles destacam-se os romances O sonho da terra (Prêmio Bienal Nestlé), Os rios inumeráveis e A divina paródia.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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