Um assassino necessário

Em “Sujeito oculto”, de Manoel Carlos Karam, toda a fleuma, paciência e cálculo são indispensáveis
Manoel Carlos Karam apresenta uma vasta gama de experiências de linguagem, que maduras arquitetam uma obra sólida, rica e concisa
01/01/2005

Manoel Carlos Karam é um sujeito que não pode se quedar oculto após a publicação de seu último livro. Com a mesma frieza de um assassino profissional, o autor que adotou Curitiba há 39 anos, constrói uma cilada para seu leitor; com toda boa-fé, o leitor se entrega aos encantos do narrador, e de braços dados caminham ambos pelo submundo do crime. A situação fica delicada quando lá pelas tantas o inocente leitor percebe naquele ambiente muitas semelhanças com a vida das pessoas de bem. A sedução está efetivada.

Sujeito oculto é o título da obra publicada em fins de 2004 e que merece a atenção daqueles que se interessam pelas letras. De uma maneira absolutamente despretensiosa, aberta, mas misteriosa, o narrador se posiciona ao lado do leitor, como se parceiros fossem. Essa dupla observa o mundo sob o mesmo ponto de vista e se relaciona com um alto grau de honestidade. O narrador não pretende convencer o leitor, apenas, humaniza sua existência de modo que seu ganha-pão seja uma mera atividade profissional.

Esse sujeito precisa ser oculto, sua vida depende de sua invisibilidade. Não tem sequer um nome, porque mesmo que adotasse um nome falso, seria um nome, e nomes dizem muito de quem os carrega. Não usa nome, como se nome fosse um acessório utilizado por opção, como se nome fosse algo de usar, de trocar.

Os fatos se sucedem no livro, como se estivessem suspensos; como se pairassem no ar e lentamente fossem revelados, como uma dádiva. É como se o leitor, merecesse um prêmio por estar lendo páginas e mais páginas, e por isso, devesse ser agraciado com a grande revelação. E essa grande recompensa, pode ser apenas a de dividir com o narrador a remota existência de ratos em sua casa. E isso se torna uma informação muito valiosa.

O pragmatismo levado às últimas conseqüências permitiu que o protagonista pegasse um gato na rua, e o transformasse em seu bichinho de estimação. Por que pragmatismo? Porque para ter um animal era necessário que ele tivesse utilidade, e com o advento dos ratos e a ineficácia das armadilhas, surgia a utilidade do gato; duas, aliás: o status de gato de estimação e a eliminação dos ratos de apartamento. E por isso a informação sobre os ratos deve ser valorizada. É o que ocorre com dezenas de outras situações, então a dica é guardar todos os detalhes na manga: toda a fleuma, paciência e cálculo são indispensáveis. Como para um matador.

O narrador sem nome é um matador de aluguel muito comprometido com sua atividade profissional, que leva uma vida pacata, simples e sem grandes ambições, exceto a obsessão de jamais falhar. Vai pessoalmente à feira, escolhe com toda a técnica os melhores tomates, come arroz, ovos e bife, que não julga os outros e que adora ouvir as histórias melancólicas pela voz do locutor de rádio. Não rouba suas vítimas e evita que sofram no derradeiro momento, simplesmente porque deve apenas matá-las. Não discute os motivos pelos quais os mandantes assim o desejam, apenas cumpre sua função, burocraticamente, sem envolvimento emocional, sem que suas convicções entrem em cena e comprometam seu trabalho. Ser um assassino profissional se torna equivalente a ser um bancário, um vendedor. Não há demérito.

O ponto alto do livro, porém, não reside no fato de provocar uma grande reflexão sobre a situação do sujeito e sua inserção social, o que de fato acontece, mas na aposta da experimentação estética. Karam assume um alto risco ao oferecer um personagem fora da lei, que se emaranha em sua solidão e gasta muito tempo observando a si mesmo, e precisa viver sempre alerta. Dormir pode ser perigoso demais para um pistoleiro.

Não se trata de uma experimentação ingênua e rasa, mas de um alvo que foi desenhado cuidadosamente, e atingido na mira, em uma única tentativa, única e certeira. É a conjugação mais perfeita entre forma e conteúdo, na qual um é servo do outro, constituindo uma composição homogênea e forte, porque sólida. Todos os elementos textuais recebem igual valoração na composição, desde o vocabulário à pontuação, do tema à sua execução, do exterior ao interior.

“Que sujeito sou eu? Mas sujeito exige um verbo, logo eu que penso ser um sujeito indigno de uma frase inteira. Aceito um verbo, sim, um verbo mas somente um verbo. Aceito porque eu preciso de um verbo, a minha profissão necessita de um, mas basta um. O verbo fazer, pronto, eu sou isto, o verbo fazer. A intenção era simplificar a minha vida, e às vezes tenho a impressão que reduzindo tudo ao verbo fazer eu estou indo para o lado oposto. Nestas horas eu sempre paro de pensar nisto, mudo de assunto e vou para o meu trabalho, que é o que importa, porque o meu trabalho é a única coisa que eu sei fazer, e chegou a noite” (p.12/13).

Essa construção demonstra que a idéia de simplificação existe de fato, tanto na construção do texto quanto na vida dada ao personagem, ocorre que de tão comprometidos — autor e narrador — com o simples, nasce a necessidade de explicá-lo e defini-lo, tornando- o imediatamente complexo.

O matador é uma figura muito simpática e propõe uma relação com o seu interlocutor que surpreende do começo ao fim. Provoca o leitor a todo instante frente à humanidade que demonstra. Especialmente pelo desmascarar da solidão que complementa a solidariedade do leitor para com o protagonista. É um personagem que os teóricos chamariam de redondo, porque conforme a trama se desenvolve outras facetas suas são aos poucos reveladas e em oposição à personagem plana, suas ações surpreendem, e se revelam oriundas de uma construção psicológica densa.

“Mão e dedos acostumados àquela arma, o revolver servia naquela mão como uma luva. Gostei da invenção da luva, gostei de estar fazendo invenções, era sinal que o trabalho ia muito bem” (p.15). Nesse trecho o personagem mais parece um bobalhão, feliz em conseguir pensar em alguma coisa que lhe parece interessante. Essa construção barateia o narrador, satiriza aquela figura até então tão séria, e oferece ao leitor a delícia de imaginar um sorriso de canto de boca na cara do narrador. Essa construção, não por acaso, se repete em várias situações, produz um efeito contrário à tensão predominante no texto, funciona como que ‘quebrando o gelo’, apresentando mais uma peculiaridade do narrador, qual seja, essa inocência quase infantil: “Me lembro de um relatório que foi batizado, uma invenção minha isto de batizado para quando virei o copo com água e alguns respingos bateram na página onde eu estava escrevendo” (p.64).

Em Sujeito oculto, Manoel Carlos Karam traz à tona uma vasta gama de experiências de linguagem, que maduras arquitetam uma obra sólida, rica e concisa. Não há um excesso, um termo sequer em exagero. É tudo medido, planejado e necessário. É uma obra necessária.

A escuridão em que tudo parece ocorrer, dada pela aura noir, constitui o cenário em que o leitor se planta a espera das revelações, crendo que elas, as revelações, é que trarão a cor esperada. Ledo engano. Na mesma linha de O que diz Molero cuja raiz já é Beckett, nem esperar Godot, nem saber o que diz Molero importam de fato. Para Karam, percorrer a trilha em busca da revelação é que é a própria revelação. Quem tiver olhos para ver, e sensibilidade para perceber, que se delicie.

Ao final a conclusão: o que esse pistoleiro objetiva matar mesmo, é o que já está estabelecido, é o antigo, imutável, temeroso. O que está fechado que se abra, nem que careça de uma bala ardente a lhe penetrar certeira e indubitável. Não resta espaço para o estanque, tudo deve passar por outra análise e a tentativa pode preceder um grande acerto.

Sujeito oculto
Manoel Carlos Karam
Barcarolla
140 págs.
Guida Fernanda Bittencourt
Rascunho