Muito mais que um Atlântico separa o Brasil de Portugal. Não são apenas quilômetros, naturalmente. A língua, então, pensada, sentida, falada e escrita é muito outra em cada um dos dois países. Nenhum acordo ortográfico será ponte entre Brasil e Portugal. E a literatura, então? O que se pratica em Portugal, e nos países africanos que se valem do idioma português, é radicalmente diverso do que se dá neste Brasil. Por aqui, em meio a gerúndios, coronelismo e canções, pulsam pulsões próprias — e outras nuances, que ora sabemos e muitas vezes, ignoramos.
A prosa literária recente dos portugueses parece contaminada com um barroquismo, um fluir incessante, jorro de palavras que não se guiam por objetividade e clareza imediata. Assim lemos a ficção de uma Inês Pedrosa, de um Jorge Reis-Sá e de um José Luís Peixoto, este, no caso, autor do romance, recém-publicado no Brasil, Cemitério de pianos. Os três autores citados, em especial, praticam textos derramados, líricos e sinuosos. José Luís Peixoto, por exemplo, é contraponto a muitos autores brasileiros da novíssima geração.
José Luís Peixoto tem (apenas) 34 anos e o seu projeto ficcional, sobretudo o livro mais recente, Cemitério de pianos, irradia maturidade, visão de mundo e linguagem próprios. Peixoto, devido a tais características, contrasta com autores brasileiros, da novíssima geração, badalados entre si, em bares, e até por alguns segmentos, e guetos, da imprensa. Ao invés de citar nominalmente (por que são muitos, e alguns deles poderiam ficar fora da lista), basta pensar em algum jovem autor gaúcho, paulista, carioca ou curitibano, sobretudo os que são apontados como promissores. Fulano, Beltrano, Sicrana e Belbetrano. Todo e qualquer Fulano, Beltrano, Sicrana e Belbetrano, em particular as “revelações literárias brasileiras”, produzem ficção rala, de péssima qualidade, textos capengas e visões de mundo adolescente. Fulano, Beltrano, Sicrana e Belbetrano, entre outras coisas, são tosquíssimos, artisticamente, sobretudo se comparados com o português José Luís Peixoto. Inclusive, é não apenas injusto mas impossível comparar o que não pode ser comparado. Peixoto, entre outras coisas, é, de fato, um artista, um escritor — e não uma pose.
Perplexidades
Vida, amor e morte. Eis alguns dos motes de Cemitério de pianos. O enredo trata da trajetória de uma família, os Lázaro. O pai e um dos filhos, ambos chamados Francisco, são os protagonistas. A narrativa tem um cenário relevante, ponto de irradiação de imagens e metáforas, que é um cemitério de pianos: um quarto, depósito-oficina de pianos, dentro de uma casa situada em um ponto periférico qualquer deste Portugal imaginário. A partir desse cemitério de pianos serão deflagradas e reveladas as lembranças que contam a trajetória desses personagens peixotianos.
O texto tira o chão, e desestabiliza as certezas, do eventual leitor. Não é possível precisar qual dos Franciscos está a narrar. Ora é o pai, ora é o filho. Em um bloco narrativo é o pai, depois o filho e, de tanta alteração, e sobreposição textual, tudo se embaralha. No entanto, algo se evidencia: as desventuras se repetem de geração para geração. Pai e filho, por exemplo, encontrarão, meio por acaso, talvez sem sentido, as mulheres de suas vidas. O que chamam de destino acontece para o Francisco pai e para o Francisco filho, a exemplo do que se dá, também, para qualquer humano da realidade real.
Os impasses e entraves que todo ser, da dita realidade, enfrenta com a sua família também se manifestam nesse núcleo familiar ficcional de Cemitério de pianos. Francisco, o filho, era o predileto e tal condição, como todo filho preferido sabe, não é imune de dor, além do bônus alegria. Enquanto ele era alvo de todo amor paterno que é possível em uma vida, o outro irmão — Simão — tinha como fardo suportar toda a carga de frustrações destiladas pelo mesmo pai que para o Francisco filho direcionava carinhos e atenções mil.
Outros entes, queridos ou não, surgem, desaparecem, ganham espaço, e ausência, ou nem isso, neste enredo — como se dá em qualquer família. Tios, tias, primas e outras possibilidades via DNA são personagens secundários em Cemitério de pianos. Mas, como já se mencionou nesta resenha, o que invade com força as linhas, e entrelinhas, desta obra são mesmo Francisco pai e filho, que erram, insistem e parecem ser o mesmo indivíduo — como se o leitor se deparasse com a tese de que as histórias (ou estórias) são iguais e/ou é impossível evitar ou desviar do destino e/ou herança genética.
De dimensões
O cemitério de pianos, aquele aparente e mero aposento, talvez sem relevância para outras pessoas ou personagens, era muito mais que o centro da casa da família ficcional elaborada por Peixoto. A política e a economia daquele possível país, o buraco na rua, os resultados do futebol, a conta de luz, a brisa e o pôr-do-sol eventuais, tudo se apequenava diante do mítico espaço. “A realidade era aquela sala arrumada e velha. O meu entusiasmo era uma ilusão que construíra sozinha a partir de nada. Sentado, assistia às sombras que cresciam das pernas dos cadeirões”. E, a exemplo do que já se articulou no quarto parágrafo deste texto (mas que se faz urgente repetir, e insistir), as mais caras recordações dos personagens tinham como ponto de partida aquele espaço íntimo e familiar, sedutor e irresistível: “Quando acabava de consertar um piano, sozinho, sem saber uma nota, o meu pai fechava a oficina toda para, no centro da carpintaria, tocar músicas que conhecia e músicas que inventava. Gostava talvez de ter sido pianista mas, nem mesmo quando ainda não tinha desistido de todos os seus sonhos, se tinha permitido sonhos desse tamanho”. Esse cemitério de pianos, por menor que fosse, tinha ou representava ter, para os Lázaro, o tamanho do mundo. Ou, ainda, era bem maior que o mundo. “O cemitério de pianos era enorme. As tardes tinham o tamanho de gerações encadeadas”.
Maratona
José Luís Peixoto assinala, em nota ao final da narrativa, que o romance foi contaminado pela e dialoga com a realidade. “Francisco Lázaro foi um atleta português que faleceu de insolação após cumprir trinta quilômetros da maratona, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912”. O autor, por outro lado, se exime de possíveis pontos de contato entre realidade e a ficção por ele elaborada. “A personagem que, neste romance, tem o mesmo nome, baseia-se apenas circunstancialmente na sua história. Sendo todos os episódios e personagens apresentados do âmbito da absoluta ficção.”
E, de fato, a “absoluta ficção” peixotiana, em determinado momento, na página 89 da edição brasileira, é entrecortada por indicações, como se o texto fosse uma maratona. “Partida”. E, então, blocos narrativos. “Quilómetro um”. Mais blocos de texto. Até o “Quilómetro trinta”. Então, o personagem Francisco Lázaro (pai ou filho?) — maratonista, como o Franciso Lázaro da realidade — percorrerá uma maratona (“Na Suécia, está muito calor”, insiste o texto) e não chegará vivo ao final. “O Francisco cai”. (“Trinta quilómetros. O Francisco cai exausto. O seu corpo deitado é rodeado por pessoas”).
Mas a narrativa, enquanto há simulação de que o que acontece é uma maratona, não apresenta apenas o personagem a correr, mas a própria trajetória da família a se desenrolar, em meio a lembranças, frases arrebatadoras (“A música é que tem as palavras. Quando eu toco um piano, ouvem-se as palavras que estão dentro do piano”) e muita surpresa, perplexidade e nuances as mais variadas e inesperadas. Sobretudo, o fato de que o livro (também) é narrado por um morto.