Carlos Trigueiros é um desses bons autores que misteriosamente não ganham o destaque que exige sua literatura. Buscar razões para isso é se perder no áspero emaranhado das possibilidades. Melhor deixar o exercício para especuladores mais pacientes e limitar o debate às qualidades do texto. Recheada por um humor que se divide entre o refinamento e o sarcasmo mais intenso, sua obra se marca pelo cosmopolitismo e por uma ampla e cética visão da humanidade. Em alguns momentos tal ceticismo descamba para o mais deslavado pessimismo, mas, quando isso se dá, aparece o humor que sempre redime o escritor.
Toda esta leitura pode ser feita em seu mais recente livro, Confissões de um anjo da guarda. O eixo que move todos os onze contos é Mahlaliel, um anjo mais que torto, um quase decaído. Mahlaliel o tempo todo questiona os ditames celestiais.
Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes. Aliás, porque solicitei ao arcanjo de plantão, dezenas, centenas de vezes, um encontro com Ele – o Onisciente, ou Architecto, como alguns preferem. Só queria saber por que Ele permite tanta desigualdade entre os homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem oscilações de eqüidade, numa existência digna, do início ao fim. Também queria perguntar-Lhe olho no olho: por que entre os homens não existe nada mais distante que o próximo?
Mesmo com suas nada convencionais práticas para um anjo da guarda exemplar, Mahlaliel consegue alguns protegidos também nada normais. Ele próprio se define como “um anjo da guarda dissidente” no conto que abre e intitula o livro. É nesse texto que se conhecem todo seu caráter, suas queixas e descrenças. “Ora, acreditar na idéia de que alguém, há bilhões de anos, tenha bancado, incógnito, sozinho, a construção do Universo sem levar nenhuma vantagem, já é suficiente para desconfiar do que estamos fazendo aqui. E aparentemente de modo gratuito.” E este é o melhor momento do livro, quando o anjo briga com as crenças que deve preservar e difundir. E questiona com argumentos cobertos de razão.
O interessante, e aí sobrevive uma indiscutível qualidade do autor, é que Carlos Trigueiro trabalha em seu texto a descrença de seu personagem sem cair no ateísmo inconseqüente. Não busca a doutrinação anticlerical, mas as dúvidas naturais a uma inquietação minimamente racional. E assim não nega um dos mais sólidos dogmas religiosos que diz ser a fé uma questão mesmo de fé. Não há qualquer preceito racional em sua prática.
Descrente, sem ser de todo ateu, Mahlaliel segue o rumo de suas narrativas, das histórias que guardam independência entre si. E aí começa o extenso e intenso rosário das perversões que o anjo tem que conviver. Há uma sucessão de pessoas angustiadas, freiras libidinosas, alma saudosista, homem vitimado pelo próprio preconceito, azarado bem-sucedido, jornalista que faz um estranho pacto com o diabo. Trigueiro manipula com as íntimas obsessões humanas, as ambições mais caras de cada homem. Seus personagens, no entanto, se valem do celeste para conseguir seus objetivos. E novamente estamos diante da melancólica incerteza sobre os reais limites entre a crença e a indiferença.
Esse é o grande jogo de todo o livro. Por conta disso o conto que abre o volume, onde Mahlaliel se apresenta, é o melhor, o mais bem construído. No entanto sua qualidade não chega a anular o conjunto da obra. Cada um dos textos traz um mistério, um encanto, confirma, enfim, a segurança com que o escritor trabalha seu texto.
A principal dessas qualidades, além dos enredos muito bem amarrados, é o trabalho minucioso com as frases. Sobretudo a partir dos anos setenta, em favor do coloquialismo e de uma maior aproximação com o leitor comum, a literatura ganhou uma leveza que, muitas vezes, esbarrou no empobrecimento da linguagem. Trigueiro luta contra isso ao propor frases bem construídas e com riquíssima consistência literária. “O homem conseguiu acelerar o futuro, mas sepultou a esperança de chegar lá.” “O que o silêncio integra, o rumor desintegra.” São frases prenhes de sarcasmo e força literária.
Em meio a tudo isso, há, finalmente, uma certa dose de crônica em cada um dos textos. Carlos Trigueiro se interessa pelo enredo por saber a força que ele detém. Suas histórias têm a estrutura básica do começo, meio e fim, mas a narrativa, sem necessariamente ser seqüencial, se renova pela linguagem clara e, paradoxalmente, sofisticada.
Enfim um escritor que sabe que literatura se faz com a junção de todos os fatos. Enredo, linguagem, renovação. E por trabalhar com todos, Carlos Trigueiro faz de Confissões de um anjo da guarda um livro necessário e agradável.