Em 1995, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, uma exposição apresentou ao público intrigantes obras visuais de um grande pensador da literatura. Roland Barthes, artista amador, com curadoria de Silviano Santiago, não apenas surpreendia com sua produção plástica inesperada e bela, como também instigava reflexões sobre o conceito de artista amador. Diz Barthes:
O amador não é obrigatoriamente definido por um saber menor ou uma técnica imperfeita […], mas, sim, por isto: ele é o que não mostra, o que não se faz ouvir. […] O amador procura produzir apenas o seu próprio gozo (mas nada proíbe que este, sem que ele o saiba, venha a ser nosso por acréscimo) […]
Alexandre Brandão é um amador da literatura — no sentido mais nobre do termo. Pratica com afinco o ofício de narrar: escreve contos, poesia, novelas e crônicas, além de funcionar como uma espécie de embaixador da literatura alheia, divulgando o trabalho de colegas em encontros e conversas. De sobrenome generoso, Brandão constrói uma obra sólida, em produção constante, e compreende que a vida literária só existe em regime de troca — como bem apontou Antonio Candido. Tudo isso longe dos holofotes, que hoje brilham mais por engano do que por merecimento.
Mineiro do interior que desemboca no Rio — como tantos —, Brandão é um autor ao qual convém prestar atenção. Seu mais recente livro, aí onde não cabe, reúne duas novelas: zerinho ou um e o anjo ouve os noturnos. Seguindo os passos de grandes cronistas do Rio de maravilhas e mazelas, o autor captura tipos humanos com a leveza de quem trafega entre elegância e marginalidade.
A primeira novela, zerinho ou um, vencedora do prêmio Flipoços/Kindle para escritores independentes em 2022, atualiza O príncipe e o mendigo de Twain no Rio contemporâneo. O narrador, a um só tempo irônico e compassivo, acompanha as vidas entrelaçadas de Blasco, bilionário por acaso, e Dico, excêntrico sonhador. Segundo Andréa Bieri, há ali um convite a um pacto fáustico. O jogo de trocas identitárias se dá em uma narrativa onde as metamorfoses ocorrem com naturalidade, beirando o onírico.
Nesse terreno em que a realidade é porosa, personagens circulam como alegorias vivas. Delcídio, amigo de Blasco nos tempos de escassez, transforma-se literalmente em cão fiel — com direito a coleira e pelos. Em tom de blague, o narrador revela o que, nas ruas da cidade, parece pitoresco, mas é profundamente humano: a fé nos dados viciados da sorte, a ilusão da liberdade como permanência.
Caminhar pela cidade é, para Dico, estratégia contra o tédio e a solidão. Ele busca um cão, um vínculo. Percebe, então, os sinais da vida urbana:
Captava os sinais que reverberavam na cidade: o porteiro vendo televisão em seu posto de trabalho, a ratazana correndo de um saco de lixo a outro; a mulher, ao passar por ele, dizendo ao celular: “Agora é tarde, não dá mais”; e ainda o homem, debruçado à janela, fumando.
É uma cidade de flashes e ruídos, de fragmentos sem nexo — à maneira do mundo drummondiano evocado nos versos da orelha do livro: “Meu bem, o mundo é fechado/ se não for antes vazio”. Mas também há espaço para Leminski: “Não discuto/ com o destino/ o que pintar/ eu assino”. Blasco e Dico assinam o que a vida lhes oferece, seguindo em cena — ainda que troquem de papel.
Blasco saiu à rua. Caminhou pela calçada maltratada pelo prefeito relapso. Esbarrou na bicicleta amarrada ao poste em frente à casa 408. Pulou o buraco aberto na calçada pela raiz de uma árvore.
A cidade — feita de tropeços, desvios e surpresas — é também o cenário da segunda novela, o anjo ouve os noturnos. Clara, a protagonista, lida com a morte do pai. Ao organizar seus pertences, encontra uma foto enigmática, que a conduz por um labirinto de descobertas. A imagem que ela tinha do pai — homem silencioso, apreciador dos Noturnos de Chopin — desmancha-se diante de revelações inesperadas.
Mostrei-lhe a foto de meu pai. Você é filha do Anjo? Do Anjo – me espantei? […] desconversou. Insisti. Ele disse, em tom pouco convincente, que o apelido tinha a ver com Chopin. Fernando gostava de Chopin, que produzia a música dos anjos.
Clara é lançada a uma investigação que, embora permeada por sinais e deslocamentos, não busca apenas respostas sobre o pai. Ela tateia o próprio mundo — seus limites, fragilidades e possibilidades. Em Cantagalo, no final da narrativa, o canto do galo ecoa como prenúncio de manhãs por vir.
Com estrutura de romance policial que deixa pontas soltas, o anjo ouve os noturnos joga com o gênero. Os títulos dos capítulos remetem mais à crônica do que à linearidade narrativa. Os grafismos de Ricardo Tamm, presentes desde a capa até as páginas internas, dialogam com esse caráter fragmentário e lúdico da obra: linhas emaranhadas, setas, asas interrompidas, giletes partidas, braços estendidos para o vazio.
aí onde não cabe habita justamente as frestas do real. São duas novelas que revêm papéis e lugares urbanos, apontando perdas como ponto de partida. Um mundo de minúsculas, de frases em curso de sentença. Nada começa — tudo continua. As identidades se esgarçam para abrir espaço ao inédito. A leveza, o humor, o deslocamento: eis os instrumentos de Brandão, que, como suas personagens, segue caminhando, sem certezas.
Como Barthes sugeriu, o amador escreve para o próprio prazer. Mas, não raro, esse prazer extravasa — e nos atinge. É o que faz Alexandre Brandão, em silêncio, à margem, entre letras que desenham um mundo por vir.