Antonio é o terceiro romance de uma escritora que nasceu formada como Palas Atena, já aparelhada e pronta para o combate. Desde Azul e dura, romance publicado em 2002, que Beatriz Bracher demonstra sua proficiência nas artimanhas narrativas e brinca com diferentes versões e revisões dos fatos, construindo um passado e encorpando uma realidade à base de narrativas robustas. Criando este novo romance através das palavras de narradores múltiplos, que parecem se desculpar pela falta de seiva que comprometeu a perpetuação de uma burguesia poderosa e de seus valores pessoais, éticos e culturais, a autora nos faz lembrar de um recurso aplicado magistralmente por Mario Vargas Llosa (Conversa na Catedral e Pantaleão e as visitadoras) e Lúcio Cardoso (Crônica da casa assassinada) em algumas de suas obras, quando o autor parece ceder seus privilégios aos personagens que examinam seu mundo em vias de destruição. Em Antonio, porém, surge uma diferença sutil, que, no entanto, organiza o texto: se Vargas Llosa e Lúcio Cardoso dão voz a todos os seus personagens, Beatriz Bracher trabalha o silêncio, retira de seus protagonistas a possibilidade de se explicarem, e é pelo contraste de vozes e pelo silêncio encorpado dos ausentes que o romance ganha sua contundência.
Contrariando as palavras de Xavier, um dos personagens formadores de Antonio, que “queixava-se de que a literatura brasileira só tinha por personagens funcionários públicos, intelectuais, artistas, prostitutas, retirantes, no máximo um comerciante, jamais industriais, banqueiros, um executivo de sucesso”, os narradores do romance são retirados de uma faixa burguesa bem-sucedida, fruto de uma burguesia tradicional que construiu o país entre os anos 1940 e 1960, e que experimenta, nas duas décadas seguintes, formar seus filhos sem a rigidez ética e hipócrita de seus pais, oferecendo-lhes a embriaguez do pensamento liberal e da experimentação, ao mesmo tempo que cobra deles sucesso profissional e reconhecimento. (“As expectativas contraditórias de Xavier devem ter sido um antinorte, uma desorientação perpétua para os seus filhos.”). Como ressalta Vinícius Jatobá, em texto no Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, “No Brasil de hoje ninguém além de Bracher escreveria um livro como Antonio porque somente ela poderia escrever sobre essa classe média alta paulista com tanta intimidade e premência (e ironia e fel)”.
São três os narradores: Isabel, uma professora universitária que assume o papel de matriarca do clã, contra a própria vontade; Haroldo, amigo de Xavier, advogado de sucesso e o único do grupo que consegue preservar a riqueza, pois a família Kremz vê todo seu patrimônio se desmanchar e acabar; e Raul, amigo de Teodoro, publicitário estressado e pouco criativo, que sempre gravitou fascinado ao redor da família do amigo. A pedido de Benjamim — “filho de bom augúrio” do rebelde Teodoro, neto do exuberante Xavier —, instados por suas perguntas, os três rememoram o passado, tentando explicar e prever a herança que o jovem, prestes a ser pai de Antonio, vai transmitir ao filho. Os depoimentos, ao invés de construir um futuro para esta criança, são explicações, justificativas, narrativas que tentam consertar um passado que não tem remédio. A redenção se encontra no subtexto silencioso que os personagens que não têm direito à voz vão tecendo.
O enredo — e seu conflito edipiano — revela-se já no início do romance, e, curiosamente, através das palavras de Teo, repetidas por Raul, o redator que não consegue criar:
“Então”, seguiu Teo, “ele me disse que ele, meu pai, Xavier Kremz, era, antes de tudo e para sempre, pai do seu filho morto, Benjamim dos Santos Kremz”. É, é exatamente o mesmo nome que o teu […] eu sempre soube que o seu nome era igual ao desse irmão morto, o nome da certidão que você viu agora. Na época não tinha me ocorrido que a tua mãe podia ser a mesma, afinal Santos é um nome bastante comum. O impressionante é que isso que você viu agora nas certidões e que te transtornou, esses papéis que a Leonor achou e por causa deles te chamou, isso que te trouxe aqui, esse enrosco todo é verdade, parece ser.
Com o tempo e a continuação da leitura, o contraste entre a impassibilidade deste silente Benjamim frente à degradação de seu pai e seu transtorno face à revelação de suas origens serve para sublinhar o papel de Elenir, figura coadjuvante e trabalhada pela devoção e culpa de seus dois amantes, incapazes de resgatá-la de sua condição subalterna no texto. Em seu mistério, Elenir, Lili, Leninha se desdobra numa trindade mítica que gera e castiga, que premia e devora. O romance se desenvolve em tríades e duplas: Xavier tem o seu duplo (e seu oposto — antônimo?) em Haroldo e no próprio filho Teodoro. Teo contrasta com Raul e com o pai. Elenir é o fantasma de Isabel, mas assombra Xavier e Teo.
E os filhos dessa família são quatro, dois casais, que invertem suas imagens e possibilidades, ou seis, se acrescentarmos os dois Benjamim. Esses dois se opõem como vida e morte, mas compartilham, além do mesmo útero, a loucura, a insanidade, o silêncio que os geram. Nas respostas ansiosas e angustiadas dos três narradores, o que se desvela não é a verdade em sua univocidade, mas o desejo de se justificar as ações do passado, além de redimir um possível futuro. Na fala de Isabel aparece, logo no início, uma advertência: “os homens gostam de inventar histórias e fantasiam muito.” Estamos, então, prevenidos contra os depoimentos desses seres fracos, que não souberam crescer e impedir a falência de seus sonhos. Essa é a única verdade possível, é o que aprendemos, juntamente com Benjamim. Nossa própria história depende do discurso de quem narra os fatos e da compreensão de quem escuta os textos. Mesmo as ações mais comprovadas só adquirem sentido dentro da trama que a história e suas circunstâncias nos permitem perceber, vagarosamente, analogicamente, serenamente. Assim se compreende o lamento de Teo: “Eu fiz o mesmo que fizeram conosco, Raul, coloquei Benjamim em briga com o mundo e não o mundo dentro dele com calma e tempo”. Mas o mundo não é uma coisa inerte, que se deixa manipular com tempo e calma, daí, talvez, a origem da loucura de Teo. O mundo não é ordenação, é caos e improviso. É transgressão e frustração. E conformidade, ajuste, humildade. E a possibilidade da arte e do amor; do ajuste e de novos códigos.
“O material de Bracher é o futuro, e esse novo mundo incerto parece instabilizar não apenas Benjamin, o instigador e inquiridor, como também o próprio estilo da autora e a coerência de seu projeto narrativo” — ensina Vinícius Jatobá, que lamenta: “É um livro que se termina com a impressão de que suas personagens gostariam de ter falado mais e mais acerca de seus mundos e vidas e sonhos e desejos”. Beatriz Bracher, porém, impede que seus narradores continuem com suas narrativas catárticas. O passado, embora estenda seus fios para o presente, não pode solucioná-lo, bem como o conhecimento do ontem não pode garantir sua aceitação. A morte de Isabel e o poderoso capítulo em que a autora silencia seus narradores e apresenta os sobreviventes, ainda em estado de choque, tentando manusear o cadáver que herdaram, são o ponto alto do livro. O humano se revela, finalmente, despido de teorias e de ideologias de classe. Todos são iguais perante a morte, mas todos podem se livrar de suas marcas com apenas um pouco de água lustral. No banho ou na chuva, os filhos e netos se purificam, aceitam-se e acertam as contas com o cotidiano feito não de um “oco” que nunca aparece nas narrativas, mas de coisas silenciadas como “sangue, risos, ódios, mortes, doenças, catarros” e muitos outros fragmentos como os que iam sendo recolhidos por Teo, na tentativa de uma outra escrita, de uma nova organização para o caos que só ele parecia saber reconhecer na vida de todos.
No exame do segundo romance de Beatriz Bracher, Não falei, Marcelo Moutinho percebe que o leitor “acompanha esse sofrimento de rua sem saída até receber, com a desconstrução do delicado Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto, um aceno esperançoso”. Em Antonio, esse aceno se materializa em gestos delicados, no cuidado com o invólucro do passado, no abraço de mãe e filha, no comentário que tranqüiliza a mãe e lhe permite reconciliar-se consigo mesma: “não fizera feio, até o final não fizera feio. Pas mal. Fechou os olhos e foi embora”. Os odores e as inadequações, os ressentimentos e medos se dissolvem no quarto de janelas abertas, na água que lava corpos e objetos, no ser que ainda há de chegar. Mas, para que ele surja, os ecos do passado urdiram sua trama com palavras e “unhas cortadas, escovas de dentes, machucados, mercúrio cromo, piolho, catapora” e ainda “trabalho, salários, herança, tempo”, um caos muito mais gerador que a loucura, e “bem mais complicado que uma história de amor”.