O exagerado Dom Casmurro narra o tempo de um pequeno silêncio entre ele e Capitu como se este durasse um século, lá no capítulo 138 de uma das obras-primas de Machado de Assis. O resultado que ele espera obter com a hipérbole é óbvio: simpatia, se não redenção. De seus leitores em geral, muitas das vezes ele consegue o primeiro sentimento, enquanto que o segundo é mais fácil conquistar dos leitores amenos do que dos ferrenhos. Inúmeras críticas, desde Helen Caldwell, já foram feitas em favor de Capitu e contra o mimado Dom Casmurro. Mas deixemo-lo para lá por um instante, que o pobre diabo já foi aqui, em poucas linhas, maldito de mimado e de exagerado; basta.
Em 2010, Marco Lucchesi lançou Record O dom do crime (Record), que acaba de ganhar nova edição. O romance, antecipando o que alguns outros estão fazendo agora, como são os casos recentes de Homem de papel, de João Almino, e de A vida futura, de Sérgio Rodrigues, parte a seu modo da literatura de Machado para dar o tom e compor o enredo.
Em 1900, no Rio de Janeiro, um homem velho é aconselhado por seu médico a escrever um livro de memórias, remédio para combater o branco em que a vida passa. Ele segue o conselho, redige um primeiro capítulo sobre si mesmo, revelador, depois mais dezenas de pequenos capítulos sobre um crime acontecido anos antes na então capital federal; alguém encontra o manuscrito, julga-o, edita-o, julga-o um pouco mais, e é isso, afinal, o que se tem disponível para leitura.
O crime por si só não é nada de outro mundo, tampouco está enrolado na mirabolância detetivesca que desejam os fanáticos por mistérios e, mais que isso, pela resolução dos mistérios. Trata-se de um homem, José Mariano, que, impelido por ciúmes e insegurança masculina, mata a mulher, Helena Augusta. Ocorrido em 1866, o crime teria inspirado Machado, que à época escrevia seu primeiro romance, Ressurreição.
O homem que, no livro de Lucchesi, conta a história criminal e literária, estando em algum ponto entre a confusão mental senil e o pleno domínio de uma consciência cínica, talvez pendente mais para um extremo do que para o outro, entrelaça tudo, declarando que “Helena jura fidelidade a Bentinho, enquanto Mariano pede a mão de Capitu no morro do Castelo”. Não seria ridículo se perguntar se o dom do título não seria, na verdade, Dom, com maiúscula.
Teses sobre Machado
O teor ensaístico da narração é forte. Não há incontáveis fatos, variáveis, reviravoltas. O enredo não se desenvolve, pelo menos não de maneira linear e habitual; o crime é cru, e a ficção de Machado o copia, eis a tese do narrador, que não se cansa de voltear o acontecimento para lhe perscrutar todos os lados possíveis, exceto quando precisa ir cuidar de sua gata Graziela. “Cruzo as histórias e não me decido pela mais cruel”, anota ele a certa altura, entregando que, claro, existem diferenças entre a história real e a ficcional, embora as diferenças não sejam suficientes para uma diferenciação categórica.
Similia similibus curantur. Ou semelhante é curado por semelhante. A frase latina, conhecida pelos mais afeitos à homeopatia, que cura através de medicamentos em certa medida iguais à doença, a pequenas mas constantes doses, é citada pelo narrador como que para avisar: narrarei aos poucos. E numa camada mais profunda, corroborando a tese, avisa ainda: vejam só como Machado de Assis, ao tomar a pavorosa realidade, um feminicídio do qual o assassino, aliás, sai inocentado, brutalidade e injustiça difíceis de digerir; ao transformá-la em ficção, com engenho e sobretudo com poesia; e ao dosá-la conforme melhor absorve a compreensão humana, extrai da história o que raramente está nos prontuários policiais ou nas matérias jornalísticas. Bento Santiago mata Capitu aos poucos, com “brevidade e sequitude”, como confessa, sem muito pudor, no capítulo 141, “A solução”.
Para além da “cura” da realidade, argumento de fácil contestação, ou até mesmo de refutação veemente, o narrador de O dom do crime traz à tona uma preciosidade em relação à literatura machadiana. Sendo ele alguém de alta erudição, a citação em latim faz parte de uma infinidade de citações gotejadas no texto, principalmente as de Machado e de contemporâneos do Bruxo. Todas em itálico. Algumas de jornais, é verdade, mas muitas de caráter poético, como que para chamar a atenção para a beleza das expressões.
A genialidade de Machado, não precisando que mencionemos suas noções histórica, social, literária, etc., reside também em que ele próprio foi um grande poeta. Ao menos na prosa. Com pérolas como: “Amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Também isso parece estar embutido na tese do narrador de O dom do crime.
Momento de luz
Por que, contudo, o senhor que deveria escrever suas memórias acaba esquecendo de si mesmo para, em vez disso, contar algo tão distante e alheio? A resposta pode estar na dificuldade que se tem, em geral, em manter a disciplina quando se trata de cuidados próprios, os vícios sobre as virtudes; ou na possibilidade de esse narrador ser um dos envolvidos na trama, o que parece improvável e, de todo modo, infrutífero.
A resposta pode se encontrar na comparação de que uma primeira pessoa assim, não obstante retórica, está disposta a falar de outrem, a interpretá-los, a pensar a partir deles, a colocá-los em posição protagonista, e não se iguala às primeiras pessoas (e coadjuvantes) comuns da prosa brasileira contemporânea, muitas delas sempre numa padronizada marcha atlética. O tom confessional dessas últimas primeiras pessoas — com o perdão do paradoxismo não intencional — confessa muito pouco além da própria egolatria autoral. Portanto, um eu que, no fundo, não fala somente do eu, como é o caso do narrador de O dom do crime, há de se apreciar.
“Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o passado.” Este é um dos períodos que abrem Ressurreição. Como Félix, personagem que viveu o mesmo Rio de Janeiro em que se deu o assassinato de O dom do crime, o narrador do livro de Lucchesi estica-se pelos tempos. Conta-nos o que aconteceu no passado, demonstrando como isso influencia aquele presente e, ávido embora pessimista, ficando de olho já no nosso século 21: “O drama desse velho narrador e de suas personagens, que, em 2010, serão menos que sombra e pó”. Pode ser.
Somem-se mais doze anos de esquecimento, de um silêncio que só faz crescer. Teria, enfim, o narrador acertado na previsão. Mas, ao contrário da hipérbole que busca a redenção, esse grande silêncio, sem muito enredo, esquecido na história, se torna um pequeno momento de luz sobre a sombra e ar fresco sobre o pó.