Agá, publicado originalmente em 1974 e republicado em 2019 pela Cepe, é considerada a principal obra do pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976). Nascido no Engenho Verde, distrito da cidade de Palmares, localizada na Zona da Mata, sul do estado, foi um artista múltiplo, envolvido em diferentes atividades criativas como o teatro, a tradução, a ensaística, além da escrita de romances. Importante na cena teatral pernambucana, a partir de 1953 passa a morar em São Paulo, onde atua em jornais e teatros, tendo sido inclusive premiado por montagens como a d’O auto da compadecida, de Ariano Suassuna.
O livro, em sua versão atual, chamada de Versão vermelha pelo editor, pode ser dividido em três partes: uma introdução no estilo invocação das musas (ou um desfile mitológico como n’As tentações de Santo Antão, de Flaubert), em que o narrador se defronta com personagens históricos e literários em um acerto de contas psicológico que parece garantir a ele a possibilidade justamente de narrar; sete “contos” com sete versões do eu-narrador, cada uma em uma condição histórica específica (cada uma, em uma hipótese interessante de tentar comprovar, representando um dos pecados capitais); e uma terceira com três livros, dos Mortos, das Mutações e das Confissões, em que o autor parte da prosa escrita para experimentações com teatro e quadrinhos. Há ainda um epílogo fragmentário, com tom quase autobiográfico, que se enquadraria na segunda parte. Embora haja uma variação grande de temas e sobretudo de cenários (cenários que acabam invocando gêneros literários, como no caso do Eu, deputado, que se passa num futuro distópico e evoca o gênero ficção científica), o livro encontra uma unidade na repetição de certos topos, como o erotismo e a violência institucional.
Tanto pela forma experimental, como pela escolha polêmica dos temas, não se trata de um livro que busque unanimidade do público. Isso já é um mérito. As passagens que envolvem pedofilia, os comentários homofóbicos e o machismo (ou dizendo com mais precisão, a visão masculina do mundo em que as mulheres são tratadas, ainda que com ternura, com uma distância objetal) são marcas do tempo de escrita do romance e, para uma análise justa de sua importância, é necessário encontrar na maneira com que retrata esta violência seu próprio antídoto. Estamos diante do espanto calculado que buscou uma obra como a do Marquês de Sade ou de Pasolini. A recepção tem, portanto, que seguir um caminho não da censura e da crítica puritana e burguesa (contra a qual justamente obras deste tipo são escritas), mas de aceitar a obra na potência crítica do que ela revela. Não há nada mais potente contra um sistema de dominação do que a exposição transparente de seus vícios, o desmascaramento de seu lado mais frágil e humano, suas manias e idiossincrasias. (Isso é que é imperdoável para os fascistas que abominam as obras de arte “degeneradas”, por exemplo.)
Assim, o que se passa à primeira vista como vontade de poder sobre a fêmea, se lido com atenção, assumindo literalmente o que é dito, mostra nada mais do que o ridículo de excessos reveladores bastante conhecidos dos tiozões autocentrados da família brasileira, herdeiros dos senhores de engenho, e suas variações, seus resquícios e reencarnações no ditador chileno, no profissional liberal burguês, no militante revolucionário. A obra que ressalta estas características no ridículo de sua humanidade (não como mera exaltação ou falso confessionalismo, caso comum de certas escolas pós-beatniks), tem mérito estético-político, não cabendo, portanto, o julgamento apressado de que se trataria de mera reprodução da lógica dominante. A literatura que se faz de boazinha, escolhendo seus temas a partir da aliança declarada com fracos e oprimidos, muitas vezes reproduz de forma mais sutil, e, portanto, mais perigosa, certas condições sociais: a imobilidade quase ontológica destes personagens.
Que apesar disso haja uma preguiça gigantesca do leitor (sobretudo da leitora) em relação à narração das aventuras sexuais infinitas e da vontade de grandiosidade política e intelectual do narrador, homem e branco, é absolutamente compreensível. A feliz e oportuna renovação pela qual passa a literatura se dá simplesmente porque há todo um material, continentes inteiros trazidos finalmente à tona, que passa por outras questões e por outras maneiras de contar. Isso não significa, no entanto, que uma obra como Agá, que traz as marcas do seu tempo, não tenha interesse (ou só tenha interesse para homens, etc.). Tem interesse, como já se disse, como testemunho de um momento específico dessa personalidade masculina e burguesa, do seu contar na literatura que, se no momento de sua escrita, talvez fosse lida ainda com alguma grandeza — embora a ironia que perpassa todos os capítulos a desautorize —, hoje aparece já quase como o clichê. Suas descrições caberiam bem, por exemplo, em alguma passagem de escárnio sobre o patrão em um romance narrado em voz feminina e subalterna, ou seja, com mérito para Hermilo Filho que soube bem carregar nas tintas na falomania de seus personagens.
Metamorfoses
Há também o mérito do ponto de vista formal do livro e da diversa plasticidade nos temas e gêneros, além da antecipação de muitos debates (a transgeneridade, o trauma da tortura, o acerto de contas com a tradição literária, o resgate de figuras históricas de luta, os quadrinhos). De propósito, não se fala em romance. Não bastasse a diversidade de gêneros nas diferentes partes do livro — conto, ficção distópica, relato de guerra, teatro —, as transformações do narrador fazem com que ele seja uma variedade de personagens diferentes, e não apenas um. Não há, portanto, desenvolvimento da narrativa e dos personagens que pudesse caracterizar o livro como romance. Longe de ser demérito, Agá mostra o domínio técnico de Hermilo nos mais diferentes terrenos. Ele se utiliza da diversidade de discursos para apresentar com mais profundidade aquela paisagem interna masculina de que se falou e a paisagem externa de um país do terceiro mundo assolado por ditaduras. A influência do Ulysses de Joyce é clara, com a diferença justamente da posição do protagonista. Enquanto no romance irlandês o estilo se transforma a cada capítulo, como uma história vertiginosa pelo inglês literário, expondo o personagem e suas peripécias também a estas diferenças de tratamento, em Agá mudam o estilo e os gêneros literários, mas também seu protagonista narrador. A cada capítulo começa-se do zero, ainda que se repitam, aqui e ali, temas e personagens, como a onipresente companheira do narrador, Eva.
Tratam-se das semelhanças e diferenças entre um romance escrito no começo do século 20 e um livro de gênero multifacetado escrito no fim deste mesmo século. O prisma literário não reflete apenas no nível metalinguístico, mas na própria constituição do personagem-narrador. Há uma esquizofrenia literária, se se puder chamar assim, que precisa sempre começar novamente do zero, movimento que ao invés de adicionar ao personagem, como no caso de Bloom, que vertiginosamente vai se tornando mais nítido com o passar dos capítulos, em Agá, pelo contrário, o torna mais difuso, ou melhor, volta sempre à estaca zero sem que haja uma unidade necessária entre suas diversas variações. Daí certos temas políticos e afetivos serem tratados quase a partir de um ponto de vista essencialista, a-histórico. O ditador é um grande pai, todas as mulheres são grandes mães, isso seja em uma distopia política no futuro, seja em um conto fantástico sobre uma presença misteriosa, seja em uma narrativa realista sobre os bastidores de um golpe de estado. Esse essencialismo felizmente não é o de uma visão histórica arquetípica, conservadora, mas, pelo contrário, bebe profundamente na psicanálise. São dramas humanos e burgueses que se refinam e se repetem. Que Agá os traga à tona de maneira tão literal e transparente é já um meio caminho para sua elaboração.
Repetição e atualização
O crítico Fredric Jameson descreve o fenômeno da esquizofrenia nas artes como um universo em que não há acúmulo narrativo possível, onde a capacidade de guardar memórias não existe, produzindo assim uma multiplicação das identidades, personagens e gêneros. A presença do híbrido até no mais íntimo da constituição das obras, característica principal do que se chama de pós-modernidade nas artes, sem dúvida opera também em Agá, sem que se possa chamá-lo apenas de moderno ou pós-moderno. Porque, se formalmente ele reproduz em muito a dissolução da psicologia moderna, seu contexto histórico tem lastro reconhecível (o corpo torturado), ainda que apresentado sob seu caleidoscópio narrativo. Como afirma Leite Farias, “os diversos narradores vivem seus episódios em espaço e tempo ora diferentes, ora em momentos quase simultâneos. No entanto, mais uma vez, as narrativas sugerem uma constante, um fio espaço-temporal que os liga: todos os narradores vivem em Estados dominados por um poder autoritário e opressor, com algumas indicações históricas ou topográficas que os situam no Brasil e na América Latina, entre os anos 1960 e o ano de 2005, sem falar na história em quadrinhos no centro do livro, que faz um apanhado histórico brasileiro de quase 500 anos do martírio e da aniquilação de rebeldes”. Trata-se, portanto, de um texto de transição entre uma estética moderna — uma perspectiva cínica sobre os excessos já em decomposição de regimes e modelos de personalidade — e a dissolução posterior — impossibilidade justamente de reproduzir este gesto anterior, forma transformada em único conteúdo referenciável, autorreferencialidade cínica, pastiche — como mostram as belas passagens do capítulo Eu, lírico-trágico-cômico-pastoral. Seria possível traçar, a partir do seu esforço de repetição e atualização — mais uma tentativa, mais um corpo brutalizado —, semelhanças imprevistas com obras contemporâneas como, por exemplo, o filme de ficção científica Cloud Atlas (2012), das irmãs Wachowski.
Trata-se de uma literatura que não é composta em oposição ao mundo, mas quase em substituição a ele — é corajosa no que o interpreta e revela, é covarde no que foge dele e se refugia em si. “Preferiria viver perigosamente a escrever um livro que merecesse o Prêmio Nobel.” É a passagem, por assim dizer, de Joyce a Beckett, com uma intermissão terceiro mundista no Concretismo.
Entendo de decompor a letra agá. Antes de tudo, é bom que se saiba ser ela a oitava letra do alfabeto e oito é o número do dia do meu nascimento. Como fugir, portanto, do mistério da letra agá? Vejamo-la graficamente, primeiro em minúsculas: h. É um homem sentado: eu, um copo de uísque ao lado, relendo Os irmãos Karamázov, à espera de minha mulher que chegará dentro de pouco para almoçarmos.
Há aí um pequeno resumo do movimento geral das partes do texto: um eu literarizado, uma literatura que guarda misteriosamente alguma revelação profunda sobre a vida, a literatura como passatempo e ao mesmo tempo, perigosamente, como sentido, a mulher (maternal) que é o suporte da vida e, consequentemente, em segredo, desta literatura, seu tema principal e seu motor. O que não cabe nisso aparece como fragmento, visto a partir de uma distância piedosa, mas impotente. É o padre que vê o militante torturado pelos militares tornar-se seu colega de cela, que o socorre no limite de suas possibilidades, mas o vê retornar cada vez mais brutalizado, até não voltar mais. Daí, dessa violência não redimível a partir de sua transformação em literatura, o retorno à literatura que redime, que potencializa diferenças, desdobra as identidades ao invés de suprimi-las (resumo possível para o belíssimo capítulo Eu, hermafrodito, que, sem dúvida, mereceria um estudo delicado a partir da teoria queer).
Por fim, para além das qualidades do texto que, sem dúvida, merece a leitura de qualquer um que queira entender a história literária brasileira recente, vale ainda atentar para o belo trabalho editorial da Cepe Editora, que resgata um livro importante em edição crítica, esclarecendo ao leitor seu percurso histórico, o contexto de sua produção e publicação, suas diferentes versões geradas pelas idas e vindas com a censura e as decisões às vezes obscuras do desejo de publicação de certas passagens pelo autor. Não bastasse esse cuidado, a qualidade gráfica da apresentação do texto, a bela capa e o cuidado com os fac-símiles e as ilustrações de José Cláudio fazem desta publicação uma referência no resgate de textos censurados e uma edição definitiva da obra.