TV Globo, dona Andrea? (Que crítica cambaleante)

Resposta de Antônio José de Moura ao texto de Andrea Ribeiro sobre o romance "Cenas de amor perdido", publicado na edição 87 do Rascunho, página 8
Antônio José de Moura, autor de “Cenas de amor perdido”
01/09/2007

Menos para Andrea Ribeiro, que publicou uma resenha alucinada, Pícaro cambaleante, na página 8 da edição 87 (julho) do Rascunho, o romance Cenas de amor perdido (Record, 2006) foi tido e havido como muito engraçado por quem de fato o leu e analisou. Além disso, para surpresa do autor, apontaram-no como “um marco na picaresca nacional”. Saíram várias resenhas neste sentido, em jornais brasileiros e também da cidade do Porto, de Lisboa e no Diário dos Açores. “Uma farsa saborosa”, diz uma delas. “O livro é uma delícia. Muitíssimo bem escrito, inteligente e divertido”, avaliou o crítico Euler Belém. “Não sei de outro romance brasileiro de 2006 que se compare a Cenas de amor perdido. Talvez chegue perto o Cinzas do norte, de Milton Hatoum.” (Costa Júnior, em As Travessuras de Biá-Biazulmi). “O principal personagem de Antônio José de Moura é o Brasil contemporâneo. O livro é puro prazer. Construtor do universo da alegria, Cenas de amor perdido é, antes de tudo — e aí reside sua maior qualidade —, livro muito bem escrito. Moura é mestre incontestável da linguagem. Se este fosse um país sério, sua literatura seria ensinada nas escolas, seria tema de filmes e novelas, de conversas e discussões em botecos, em pescarias, em boemias… Mas, se este fosse um país sério, Cenas de amor perdido não existiria.” (Da professora e escritora Janaína Amado, em longa resenha intitulada Peripécias de um galante aventureiro, publicada em alguns jornais, da Bahia, A Tarde, e outros estados). “Bendita hora em que troquei minha ida a Broadway (e olha que há anos persigo este conjunto, o ‘Riverdance’) para concluir este deleite: a leitura de Cenas de amor perdido, que terminei esta madrugada”, escreveu de Nova York a diplomata e professora Armen Nerce, que mora em Los Angeles.

Houve outras manifestações igualmente elogiosas, e não somente nos jornais, mas também por outros meios, sites de literatura, etc., de críticos, escritores, professores, compositores, cineastas e pessoas diversas ligadas às artes. Antes de embarcar para a Europa, no final de junho, Chico Buarque telefonou ao autor dizendo que leu o livro de um fôlego, que Cenas de amor perdido lhe proporcionou ótimas gargalhadas noite adentro, enquanto o lia, destacando várias passagens e, particularmente, o que chamou de a excelência da linguagem. E muito mais, o material que me chegou é vasto, mas paro por aqui, por escassez de espaço.

Claro que nem tudo foram flores na trajetória de Cenas de amor perdido. Vendo nele o que não é — um roman à clef —, além de uma devastadora crítica de costumes, interpretada como “desrespeito e insulto” aos “valores” e “tradições” da terrinha, alguns gatos e talvez gatas pingadas, que infelizmente não mostraram a cara, preferindo a covardia dos sussurros e das ameaças anônimas, moveram uma espécie de guerra de guerrilhas contra o autor, em Goiás. Houve de tudo. Um pandemônio. Um deus-nos-acuda. Puro terrorismo. Telefonemas, cartas, e-mails, injúrias, provocações, insultos, ameaças de retaliação, não pouparam sequer minha mãe e outros familiares. Num e-mail, por exemplo, que a Dercy Gonçalves se recusaria a ler, mesmo sozinha, trancada no banheiro, dado o calão de esgoto, dada a baixaria capaz de meter no chinelo até mesmo os xingamentos vazados na mais fuleira e sórdida linguagem bordelesca, prostibulenta ou lupanarística que se possa conceber, fui chamado de “patife”, de “louco”, de “desprezado escritor”, de “consagrado (rá, rá, rá!) da Record” (sic), ao passo que meu livro perdeu a palavra perdido do título, passando a se chamar Cenas de amor fodido. “Você ofendeu muita gente arriando as calças para cagar em nossa terra. No fim quem vai sair cagado é você. Goiás não é a casa da mãe Joana, se o ‘consagrado’ não sabe, nós avisamos. O ‘consagrado’ já levou o primeiro ‘jab’ de esquerda tipo M. Tyson no focinho, e está nas cordas. No próximo, será nocaute” (sic). Esse — imaginem — é o único trecho publicável, o mais ameno, das promessas de represália que me fizeram à socapa, pelas costas. Certa noite, enquanto voltava a pé do supermercado, jogaram um carro contra mim. Safei-me. Escapei por um triz. Felizmente, inteiro. Sadio. Intacto. Saudável. As hostilidades começaram tão logo o livro aterrissou nas livrarias e tiveram seu ápice no Natal. Tolerei-as em silêncio, levando em conta o conselho de Millôr Fernandes de que não se deve ampliar a voz dos idiotas. A onda baixou um pouco, a tormenta arrefeceu — até quando? De qualquer modo, pode recrudescer.

Que terá motivado tamanha ira, anônima, traiçoeira mas efetiva, aguerrida e militante? Que terá gerado uma carga assim tão grande de ódio, expresso de maneira apócrifa? Claro: o conteúdo de Cenas de amor perdido, que teria ferido um sentimento xenófobo batizado aqui de goianidade. Ele é exercitado pela porção mais ortodoxa e radical de uma elite conservadora, às vezes com incrível agressividade e sempre em nome da tradição e em defesa de “nossos valores” — os valores e hábitos da terrinha, alguns remontando à época do império.

Isso ocorreu em Goiânia. Jamais supus que fosse ecoar em Curitiba

Resenha no Rascunho
Em sua resenha no Rascunho, depois de conjecturar acerca de assuntos variados, Andrea Ribeiro acaba arrolando alguns dos temas focados em Cenas de amor perdido que se mostraram molestos e nocivos à goianidade, e, mutatis mutandis, também à brasilidade no que esta tem de exacerbadamente ufanista, degenerado, corporativista, corrupto, conspurcado e bizarro: religião, tabagismo, música sertaneja, dicionários, oligarquias, coronelismo, política (Voilà! Lula-lá-lá e o PT encontram-se lá!), peculiaridades regionais e não regionais, existência de vários brasis, precariedade das instituições (judiciário e ministério público no meio), mazelas da República, jornalismo promíscuo, cultura, intelectuais orgânicos e puxa-sacos do poder, vulgaridades do Brasil plebeu e pouca vergonha do Brasil oficial, do qual — repita-se — não ficam de fora nem o PT nem os três poderes e respectivos mecanismos de controle do rebanho nacional.

Dona Andrea rotula ou classifica todos esses assuntos como “bobagens”. Diz ela: “São tantas bobagens, que o coitado do Biazulmi fica perdidão no meio da história”. Perdidão, não, Andrea: morto. Mortinho da silva. Amargurada, Andrea desabafa: “O que mais me perturba no livro todo são as referências do narrador”. Só que não existe um narrador no livro. Dona Andrea o inventou. Nele não aparece nem mesmo o discurso livre indireto, pois a narrativa se circunscreve a um diálogo entre dois professores, dois catedráticos, um da terra, outro adventício, de férias, bebendo cerveja à margem direita do Araguaia. Não contente, Dona Andrea teria que inventar mais. E inventou. Inventou a TV Globo e a enfiou goela abaixo no romance. Na ânsia de defender de maneira gratuita, intempestiva e pressurosa a Rede Globo, atacou sem piedade e com total desconhecimento de causa um romance que não citou a Vênus Platinada em cuja telinha há tanta gente no Brasil louca por aparecer, como profissional ou tão-somente pelos tão decantados 15 minutos de glória. (Gente também da procuradoria geral da República? Talvez).

Salta aos olhos que Andrea Ribeiro resenhou o livro sem o ler, ou se o leu foi pela rama, de oitiva, leitura dinâmica, eivada de parti pris, idiossincrasias e sentimentos de vindita — vezo de ofício?). Sem falar nos erros crassos cometidos. Um deles encontra-se no final da resenha, quando Andrea Ribeiro fala em “nomes de capítulos”, os quais “são uma dor de cabeça”. (Cuidado com a cefaléia, minha senhora!). E dá um exemplo: o capítulo V, página 35. Só que em meu livro há capítulos mas não há “nomes de capítulos”. Isso é outra invenção de Dona Andrea, que confunde nomes e até mesmo numeração de capítulos com resumo ou apanhado dos assuntos mais importantes tratados em cada capítulo de novelas, romances, narrativas em geral, procedimento adotado por autores distintos, de diferentes gêneros e épocas, dos libros de caballerías ao folhetim e aos pícaros, além de inúmeros outros, inclusive hodiernos. Um recurso sempre recorrente, valioso e inesgotável, de que lançaram mão autores diversos, como Joanot Martorell em Tirant lo Blanc, Cervantes no Quixote, Avellaneda na usurpação da segunda parte do Quixote, ou seja, em O livro apócrifo de Dom Quixote de la Mancha (1614), sem esquecer Rabelais, Swift, Fielding, Dumas, Voltaire no Candide, quer dizer, uma infinidade de autores, inclusive brasileiros, entre eles alguns contemporâneos. São frases que resumem o que é dito no capítulo, cumprindo uma função análoga à do lead em jornal, na abertura das matérias, que é a de fornecer ao leitor um resumo completo do fato. Esse apanhado de frases, com a finalidade de transmitir ao leitor o que vai ser tratado no capítulo, varia de tamanho num mesmo livro — uma, duas, dez linhas ou mais. Sumário dos assuntos que serão expostos em detalhes, esse sistema nasceu ou foi introduzido na escrita durante a Idade Média com o nome de incipit (começo, início, etc.), em contraposição a expucit (de conclusão, exposição). Usaram e abusaram de tal expediente na Idade Média tardia e em obras escritas no Renascimento. Não obstante, continua atual. O alemão Ernest Robert Curtius escreveu um livro definitivo sobre o tema, intitulado Literatura Européia e Idade Média Latina. Confundir incipit com nome de capítulo, como fez Andrea Ribeiro, não constitui apenas uma impropriedade, mas pisada feia na bola, erro cabeludo: seria a mesma coisa que confundir lead com subtítulo. Valei-me, Virgem Santíssima!

Distorções
Se cometeu medonhos deslizes de linguagem, de informação e formulação, se incorreu — e como incorreu! — em distorções, de caso pensado ou não, a nossa resenhista no entanto mostrou-se exímia em matemática elementar, a ponto de contabilizar com exatidão os coitos do nosso Don Juan — palavras dela: “…. 23.531 mulheres (…), mas essa conta estaria totalmente equivocada. Seriam quase 148 mil. Fora as prostitutas”. Estas cifras não se encontram no romance, vale dizer, foram inventadas pela autora da resenha. Na primeira, promoveu um aumento. Na segunda, optou por um “quase” redutor. Que precisão aritmética nas bimbadas do galã! Do túmulo, Tirso de Molina agradece.

Há outros erros graves indicando que a azeda resenha de Dona Andrea Ribeiro prescindiu da leitura de Cenas de amor perdido. Ou, para ser condescendente: foi produzida após uma leitura desleixada, de quem salta páginas — uma leitura perfunctória. (Perfunctório: eis um vocábulo bastante utilizado e gasto nas lides forenses, não apenas por advogados, juízes, mas também pelo pessoal responsável pela formulação dos libelos, sumários de culpa, etc., um dos quais, promotor, é apodado em meu romance de “abutrezinho do fórum”, o que pode ser motivo suficiente à alimentação de ressentimentos e tentativas de desqualificar raivosamente a obra e o próprio autor).

Tendo ido ao fim, voltemos ao começo da amarga resenha de Andrea Ribeiro. Ela a abre sentenciosamente assim: “Escrever com humor é muito mais difícil do que parece”. Nada disso. Pelo contrário. Escrever com humor é fácil. Basta ter humor. Agora, escrever, sim, é dificílimo, visto que requer, no mínimo, talento, competência, domínio da língua, cultura, técnica, bossa e muito, muito preparo. Quando se escreve para opinar sobre o que o outro produziu, além de todos esses predicados, exige-se também integridade, o que afasta de pronto qualquer coisa que lembre ressentimento ou animus delinquendi. De cara feia, a carrancuda resenhista sustenta que neste livro que ela, ao que parece, não leu, “não há graça alguma”. E enumera: “Nem ironia, nem gracejos, nem diversão”. Poucas linhas adiante, à falta do que dizer, repete as mesmas palavras, a mesma baboseira, a tríplice condenação. Antes, já cometera a leviandade de “arranjar” um fio condutor para o romance — um fio condutor tão real quanto a canonização do José Dirceu ou do Renan Calheiros pelo papa. “O fio condutor” — proclama Dona Andrea — “seria o encontro dos amigos no boteco com uma das ‘viúvas’ de Biazulmi”. Nada mais falso. E tolo também.

Ora, escrever com humor pressupõe um dom. Não achar graça de nada, ou não achar nada na graça, em termos de psicologia constitui desarranjo mental, perturbação, uma doença denominada agelia (do fr. agélie), definida como “a ausência absoluta de riso” pelo doutor Henri Piéron, professor honorário do Collège de France e diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de Paris, que a incluiu em seu Vocabulaire de la Psychologie, edição da Presses Universitaires de France. Quanto a ensaios sobre a natureza e significação do humor e do cômico, citam-se vários, sendo os três mais importantes de autoria de Bergson, Freud e Pirandello. O de Henri Bergson, Le Rire (O riso), é geralmente tido como o maior clássico do gênero. Nesse famoso ensaio, Bergson disse que só se ri do humano. Dona Andrea Ribeiro foi muito desumana. Não vou rir dela.

 

Antônio José de Moura

Antônio José de Moura é autor de Cenas de amor perdido, Quilômetro um, Mulheres do rio, Dias de fogo, Sete léguas de Paraíso, entre outros.

Rascunho