Parece um consenso de público e crítica que o romance póstumo Em agosto nos vemos é um livro menor — em sentido literal e figurado — de Gabriel García Márquez (1927-2014): “De fato, não está tão lapidado como seus maiores livros”, reconhecem os filhos Rodrigo e Gonzalo García Barcha, que quase dez anos depois da morte do pai — que então sofria de demência — desobedeceram a sua ordem de não o publicar (como o melhor amigo Max Brod fez com Franz Kafka) e assinam seu prefácio.
“Este livro não presta. Tem que ser destruído”, havia declarado o escritor colombiano, vencedor do Nobel de Literatura em 1982. “Ao julgar o livro muito melhor do que lembrávamos, nos ocorreu outra possibilidade: de que o declínio de suas faculdades mentais, que não permitiu a Gabo terminar o livro, também o impediu de perceber como ele estava bem-feito”, justificam-se os filhos.
Em episódio dedicado a García Márquez do podcast Página Cinco, comandado pelo jornalista Rodrigo Casarin, o professor, escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto opina:
Esse esfacelamento da memória é muito irônico num escritor que conseguiu recuperar a memória mítica da América Latina. Os últimos livros dele [desde Memória de minhas putas tristes] padecem da falta de uma exuberância que havia nos outros livros […]. É claro que nós os lemos com uma memória afetiva, à sombra de uma obra. […] Mas esses livros ruins — e eles são bons livros ruins — são altamente literários e conquistadores. […] Mesmo o mais recente, Em agosto nos vemos, é um grande livro, em termos de literatura.
Antes desta resenha, de Gabo eu só havia lido Olhos de cão azul (1972), Crônica de uma morte anunciada (1981), Doze contos peregrinos (1992), Memória de minhas putas tristes (2004) e algumas crônicas jornalísticas — além de ter visitado a casa e museu do escritor em Cartagena das Índias (Colômbia) e uma exposição temporária na Biblioteca Nacional de Buenos Aires —, e devo confessar que até hoje não encarei Cem anos de solidão: enquanto eu não o fizer, sei que não passo de um pseudofã não-iniciado na obra do maior expoente do realismo mágico na América Latina.
Ironicamente, porém, creio que essa falta me possibilitou uma perspectiva privilegiada e singular sobre o romance póstumo recém-lançado: uma leitura menos comparativa ou saudosista, sem tanta expectativa e, consequentemente, decepção ou frustração (não o li “à sombra” ou à luz de Cem anos de solidão). Dito isso, Em agosto nos vemos me parece uma pequena obra-prima tocante, em vários sentidos: comovente, erótica e musical.
Traição quase traída
No decorrer do breve romance, as aventuras amorosas da mulher casada Ana Magdalena Bach, inspiradas nas visitas solitárias que faz ao túmulo de sua mãe numa ilha do Caribe, tornam-se um ritual anual, repetido a cada 16 de agosto, “o mês dos calores e dos aguaceiros loucos”. Desde o início ambíguo, a protagonista prepara-se para ir ao cemitério — cujo sepulcro materno logo se converterá em confessionário de seu adultério — como para um encontro romântico às cegas.
Após sua primeira “aventura feliz” no hotel “velho e decadente” (descrita também como uma “noite louca”, “de amor livre”), Magdalena Bach se apaixona por um homem que, para sua humilhação, a toma por prostituta:
Só então se deu conta de que não sabia nada dele, nem mesmo o nome, e a única coisa que restava de sua noite louca era um triste cheiro de lavanda no ar purificado pela borrasca. Só quando apanhou o livro na mesinha de cabeceira para guardar na maleta foi que percebeu que ele havia deixado entre suas páginas de terror uma nota de vinte dólares.
Assim, o desfecho do primeiro capítulo é construído com insinuação e surpresa.
Após o episódio, a mulher fica “com o coração na mão”. Seus sentimentos são ambivalentes em relação ao pagamento que recebeu — os vinte dólares, um misto de elogio e injúria, conquista e frustração:
Não sabia se emoldurava a nota como um troféu ou se a destruía para conjurar a indignidade. A única coisa que não lhe parecia decente era gastá-la.
Quando volta para casa e a família, Magdalena Bach se preocupa em esconder sua traição, mas quase é traída pela própria linguagem e seus sintomas, numa confissão de culpa também mascarada — a qual não passaria batida por doutor Freud. Primeiro se entrega com uma ambiguidade, ao recusar o banho com Doménico Amarís, seu marido, um costume de ambos: “— Eu não tomo banho desde ontem — disse. — Estou cheirando a cachorro. // — Mais uma razão — acrescentou ele.” Depois, com uma projeção, quando a filha Micaela lhe conta que “um médico amigo tinha implantado nela aos quinze anos um dispositivo infalível”: “– Puta!”, acusa a mãe. Por último, com uma recaída por cigarros e um ato falho com cinzeiros e “guimbas esquecidas por descuido”.
“As putas não leem”
Esse mostra-esconde da linguagem e dos sintomas (“[Magdalena Bach] parecia falar não tanto para dizer, e sim para ocultar”) é típico também do erotismo, onde ao corpo e ao sexo somam-se a fantasia, a imaginação. Nesse sentido, García Márquez nos oferece uma definição velada do conceito durante a segunda aventura sexual da protagonista, numa praia da ilha: “[…] juntos [ela e o amante] se entregaram ao prazer inimaginável da força bruta subjugada pela ternura.”
Ironicamente, o segundo amante da “puta” Magdalena Bach se revela um gigolô.
Outra ironia refinada: Magdalena Bach sempre leva algum livro escapista para a ilha (Drácula, de Stoker; As crônicas marcianas, de Bradbury, etc.). Ao voltar da segunda viagem, seu marido afirma para ela em um diálogo na cama: “As putas não leem”. (E o quanto ele sabe de putas, afinal?)
Na sua íntegra, esse diálogo é, em si, sintomático: ao que parece, a “angústia” da protagonista não se deve tanto ao fato de ter sido traída pelo marido com uma chinesa (“uns doze anos antes, no hotel de Nova York onde ele ficou com sua orquestra num fim de semana durante o Festival de Wagner”), mas, diante dessa descoberta, de ela mesma não o ter traído antes — em oportunidades passadas, perdidas — ou, ainda, de sentir-se agora culpada por isso.
Também é irônico e surpreendente que seu último amante seja um bispo.
Coincidências significativas
Em Sincronicidade: um princípio de conexões acausais, Carl Jung acrescenta esta intrigante nota de rodapé:
Às vezes nos sentimos um tanto embaraçados quando se trata de dizer o que pensamos do fenômeno que Stekel chama de “compulsão do nome”. Trata-se, às vezes, de coincidências grotescas entre o nome e as peculiaridades de uma pessoa. Assim, por ex., o Sr. Gross [Grande] tem mania de grandeza, o Sr. Kleiner [Pequeno] tem complexo de inferioridade. […] Tudo isto são caprichos absurdos do acaso ou efeitos sugestivos do nome, como Stekel parece admitir, ou “coincidências significativas”?
Ora, o nome de Magdalena Bach é sua sina: ela vem de “uma família de músicos” (como Johann Bach), trai o marido e é tomada por prostituta (Maria Madalena).
Outra sincronicidade de Em agosto nos vemos (note-se que nenhuma destas “coincidências” são inverossímeis, apenas incríveis) ocorre depois da segunda visita da protagonista ao túmulo materno, quando confessa o primeiro adultério:
Estava tão convencida de que ela [a mãe] mandaria seu sinal de aprovação que o esperou naquele instante.
Ela volta ao hotel moderno no qual se deu ao luxo de hospedar-se, usa os serviços de manicure e cabelereiro e… quanto é a conta do salão de beleza? 20 dólares! (“uma coincidência inconcebível que só podia ser o sinal que esperava de sua mãe para cauterizar as feridas da sua aventura.”)
O castelo, “entre florestas de ferro”
Em agosto nos vemos é rico na descrição da ambientação e do clima, com lugares e paisagens que, através de um artifício romântico e uma prosa floreada, refletem ou inspiram os estados emocionais e psíquicos de Magdalena Bach: “Com as primeiras ondas de calor de julho, começou dentro de seu peito um bater de asas de borboletas”, escreve García Márquez. “[…] seu pranto pareceu aplacar os maus humores do céu.” Ou ainda: “[…] rasgou o cartão em pedaços minúsculos e os soltou na brisa cúmplice das gaivotas”. (Podemos comparar a projeção das emoções humanas em fenômenos naturais com o método oracular do I-ching e a astrologia, os quais, de acordo com Jung, pressupõem “uma correspondência sincronística entre o estado psíquico do interrogador e o hexagrama que responde” ou os “aspectos e posições planetárias”.)
Em contraste com o “povoado miserável” da ilha caribenha e o “hotel mais velho e decadente” com o qual está acostumada, Magdalena Bach vê surgir um “hotel extravagante” no qual chega a hospedar-se uma ou duas vezes: “[…] o novo Carlton, uma montanha de vidros dourados que tinha visto crescer entre florestas de ferro”. García Márquez assim também o descreve: “[…] era de uma modernidade opressiva que terminava por ser de um moralismo medieval […] onde a lei perseguia os hóspedes até na intimidade privada”. Não é que isso nos lembra Kafka?