Diário de Porto Pim, de Fernando Moreira Salles, é um livro de poemas que se coloca, desde o título, na tradição literária dos diários dos navegadores, descobridores — e dos náufragos. Os grandes empreendimentos, as grandes navegações. Os registros dessa tradição podem ser subdivididos entre os que relatam o que ocorreu, os que chegaram e colonizaram a terra visada e os que naufragaram e enviaram mensagens em garrafas, torcendo por um barco no horizonte.
Nem um, nem outro, Diário de Porto Pim é o registro negativo: em suas páginas, vemos a anotação do que não foi realizado. Uma melancolia infinita ocupa as suas páginas, como uma mancha que impede a realização de qualquer experiência. À primeira vista, seus poemas seriam herdeiros de Camões (citado indiretamente na obra), mas um olhar mais acurado poderia compreendê-los como legatários da herança negativa de Brás Cubas, o célebre personagem do romance de Machado de Assis. Salles diz: “No caminho/ não plantei/ nem pisei canteiros// No caminho/ não plantei/ aquela flor”. Cubas escreve o último capítulo de sua história como um “todo de negativas”, arrematando: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Assim como o filho abastado da família Cubas, que se apaixona por ideias e, em tempos distintos, por Marcela e Virgília, e vê o tempo acabar com esses planos e com as amadas, tendo ao fim da vida uma lista de coisas não realizadas, a voz de Diário de Porto Pim não lega ao futuro nada além da tentativa (frustrada) de realizações, restando apenas as mãos vazias de experiência por toda a viagem.
O balanço de seu percurso? “Não é meu/ o caminho/ Só o abismo/ e a pá.” No entanto, à diferença do filho dos Cubas, a “tinta da melancolia” não recebe a “pena da galhofa”. Isso porque o recurso literário de Diário de Porto Pim não é a divisão do autor em dois (o que vive a vida contada e o morto que a narra a posteriori, no caso da história de Machado). Aferrado à tarefa lírica, Salles não instaura a distância épica de Assis, nem a de Camões, e assim não vê a sua própria história à distância. Não a vê da margem.
De onde ele vê? De dentro do barco. É a distância que permite que Camões veja a tragédia de sua lira como consequência da tragédia do empreendimento português; é a distância que permite a Cubas revisitar o mundo externo e convocar o seu contexto escravocrata como resíduo de sua pobreza de experiência. Mas a tarefa lírica impõe uma proximidade radical com a matéria narrada: quem fala, nos poemas líricos, é nublado pelos afetos, atingido por toda a sua mixórdia, e fala de dentro do furacão. O sujeito lírico por excelência é aquele que se despedaça, se perde, naufraga.
É assim também que a matéria mítica é manipulada nos poemas de Salles: anestesiando o sujeito para o seu abate. Quando percebe que fracassou ou foi destruído, é sempre tarde demais. Como em Ícaro:
O sol
que cega a manhã
desperta
a derrota
do meu voo
ou em
Górdio
Com teu fio
Ariadne
a pau e corda
um dia
desatento
fiz meu nó
É necessário lembrar que tanto Ícaro, do primeiro poema, quanto Teseu, aludido indiretamente no segundo (que recebe a ajuda de Ariadne), tentam escapar do labirinto de Creta em que viveu o Minotauro. As formas simbólicas de Diário de Porto Pim são formuladas desde dentro do labirinto, e não encontram saída. Esse labirinto é o próprio mar — representante do caminho do navegante e da perdição do náufrago. “Navegante/ irmão/ esquecido dos deuses/ destinos inúteis/ vitórias e derrotas/ levadas pela onda/ te dedico este canto/ mas sei/ nunca iremos/ a Porto Pim.”
Poesia e história
Vale a pena comparar o livro de Salles com dois outros da cena contemporânea, que retomam o tema das navegações: Roça barroca (2011), de Josely Vianna Baptista, e Canções de atormentar (2020), de Angélica Freitas.
Em Roça barroca, a expansão marítima e o signo do erro e do naufrágio retornam, mas não tanto diante dos temas da cultura e da literatura ocidental, e sim, principalmente, em função da cultura dos Mbyá-Guarani. Baptista publica algumas de suas traduções de cantos Mbyá e a anexa, ao volume, um conjunto de poemas sob o nome de Moradas nômades. No entanto, a forma da tradução, que acompanha os escritos líricos, impede que o contexto histórico se afunde somente na forma, aparecendo como conteúdo da obra. Se o erro e o vagar constituem o núcleo do que a poeta tem a dizer, como no livro de Salles, a diferença aqui é que a experiência histórica dos Mbyá ainda se apresenta como uma positividade diante da negatividade da experiência do viajante.
Já no livro de Freitas, o ponto de vista assumido — o do canto da sereia — situa a voz lírica muito mais como ponto de emanação de destruição (uma destruição alegre) e reconstrução (com os escombros) da cultura. Em Canções de atormentar, a revisitação do passado assume, como nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a pena da galhofa — com alguma distância épica, portanto. Um conjunto de canções e artefatos da cultura erudita e popular é convocado e profanado por Freitas, que transmuta o sentido do “canto da sereia” como um lugar de perdição necessária para a superação do destino colonial.
Se coloco o livro de Salles diante dos livros de Freitas, Baptista e Machado de Assis, é porque todos eles tentam lidar, no fundo, a partir de posições bastante distintas — e com soluções que trazem implicações líricas e políticas bastante diferentes — com o problema do que fazer com o legado das grandes navegações, símbolos a um só tempo da globalização, do cosmopolitismo e da tragédia colonial. E, é claro, matéria tanto épica como lírica.
Mesmo em poemas líricos e aparentemente apenas líricos — como é o caso do livro de Salles — a história se apresenta de alguma maneira. Nem que seja como forma. É o que sugere Theodor Adorno em sua Palestra sobre lírica e sociedade, quando comenta algumas peças líricas de Mörike e Stefan George, afirmando que “uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica individual”. Isso não significa, no entanto, que devamos correr atrás de todos os poemas líricos com um livro de história em mãos à procura de esclarecer aqueles em função deste. Antes, isso significa que os poemas nos ajudam a compreender a história — também onde ela se apaga. Porque a história não se apaga, nem o contexto: se preservam na forma.
As formas não são apenas uma técnica dos poetas, nem somente expressão de sua força — são também saberes. Saberes dos poetas? Não. Dos poemas. Os poemas não sabem que sabem o que sabem, no entanto. E não sabem as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos, vale dizer. Você descobrirá coisas muito diferentes a propósito do mesmo evento histórico em cada um dos livros aqui aludidos. Os poemas não iluminam a mesma coisa.
Seja como for, no livro de Salles você encontrará solidão, silêncio e a marca de uma exaustão (e a reunião secreta de tantos personagens do ocidente: Odisseu, Robinson Crusoé, Santiago). O caminho se faz ao caminhar, é verdade: mas nem mesmo a própria viagem se apresenta como um “saldo” da viagem em Salles. A viagem se apresenta como tudo o que é. O que isso significa? Bem, não espere dos poemas muito mais que perguntas. Eles não respondem tudo. A construção de saber da poesia é diferente: está do lado das perguntas. O que você vai fazer com isso — that’s the question.