Mal-estar. Tensão. Incômodo. Tremores. Sudorese. Eis alguns dos efeitos que Sobre Roderer, de Guillermo Martínez, pode provocar em um leitor. O romance do escritor argentino é relativamente curto — pouco mais de cem páginas. E extremamente denso. Há muito conflito problematizado literariamente ali, naquelas poucas mas inesquecíveis páginas.
O narrador é situado em uma pequena cidade beira-mar da Argentina. O narrador é vaidoso. O narrador, antes de tudo, está jovem. O narrador se acredita capaz intelectualmente. O narrador se imagina hábil enquanto enxadrista. O narrador transmite, ou deseja transmitir, a imagem de ser leitor. O narrador se quer uma promessa. O narrador é uma quase celebridade em sua província.
Então, surge Roderer. Gustavo Roderer.
Este romance se dá pelo choque entre o narrador e Roderer. Roderer, tão jovem quanto o narrador, deixa uma metrópole no passado e passa a viver numa cidade pequena. O narrador vive nesta pequena cidade e migrará para outras metrópoles. Roderer tem um passado impregnado de leituras e reflexões. As leituras e as reflexões do narrador se darão no futuro. Roderer caminha em direção à decadência. O narrador é um personagem em ascensão. Roderer modifica o narrador. O narrador, de certa forma, modificará Roderer.
“De vez em quando — notei —, Roderer levava também algum romance, mas — e isso percebi com certo mal-estar — deixava-os para ler no pátio, durante os intervalos. Devo dizer que era muito humilhante para mim, que além de enxadrista propunha-me a ser escritor e achava ter lido mais do que qualquer outro em minha idade, ver sobre esse banco livros diante dos quais eu havia retrocedido, livros que amargamente havia deixado para mais tarde ou títulos e autores que nem sequer conhecia.”
A narrativa contrapõe duas trajetórias. O narrador que se vale das idéias adquiridas para obter reconhecimento social. Roderer busca aperfeiçoar as idéias no isolamento. Roderer se revela doente e morrerá na miséria, e esquecido, ao final do livro. O que se abre para o narrador no desfecho desta obra é um horizonte glorioso. No entanto:
“Sim, tudo estava saindo melhor ainda do que eu havia planejado e, no entanto, não conseguia deixar Roderer para trás. […] Roderer, sempre Roderer.”
Não é apenas o narrador que jamais se esquecerá de Roderer.
Todo e qualquer leitor que se deparar com esta obra de Martínez nunca mais se esquecerá de Roderer.
Mal-estar. Tensão. Incômodo. Tremores. Sudorese. “A leitura de um grande livro mexe com o que temos de mais instável e de mais sensível, pois joga com o que temos de mais inacessível e o remoto. Não é fácil ler um grande livro, mas é inesquecível”, observa José Castello no recém-lançado A literatura na poltrona. [leia resenha na página 11 desta edição]
Sobre Roderer é um grande livro. Apesar de sintético em suas 133 páginas. Sobre Roderer, acima de tudo, é um livro inesquecível. Perturbador. Imprevisível, Transformador. Genial. Com toques de bruxedo. O conflito que o escritor Guillermo Martínez problematizou é por demais envolvente. E envolve tanto porque trata de vaidade, mundo das idéias e leitura — e vaidade, mundo das idéias e leitura deve dizer alguma coisa a você, leitor, leitora do Rascunho. A mim, resenhista deste jornal, diz. E diz muito.