Tudo ao mesmo tempo. Agora

“As sementes de Flowerville”, de Sérgio Rodrigues, é um romance fluido, simples e surpreendente
Sérgio Rodrigues, autor de “As sementes de Flowerville”
01/12/2006

Quando pequena, eu achava que o futuro — tão longe — seria lá pelo ano 2000. E pensava que o mundo seria muito bacana. Carros voadores e esteiras rolantes, que substituiriam as calçadas, faziam parte de meu cenário imaginário. Um teletransportador também, é claro. Era apertar um botão e — pronto — fácil, fácil e eu estaria na casa da prima em Rondônia. Eu também pensava que, no ano 2000, eu seria uma jovem senhora, perto dos 30, mãe de três (Filipe, Ana e Gabriel) e extremamente bem-sucedida no trabalho e no amor. Usaria tailleurs bem cortados e sapatos de salto altíssimo. E seria magra, porque ninguém, no futuro, haveria de estar acima do peso.

O ano 2000 chegou, passou, e meu mundinho futurístico foi todinho por água abaixo. Agora, o futuro não me parece tão distante — está logo ali, virando a esquina. E está um tanto menos interessante. Mais cinza e barulhento. Mais cheio de gente. De diferenças. Buracos na camada de ozônio, câncer de pele, fome. Mas — não posso pensar só no pior — talvez um Filipe e uma Ana ainda possam fazer parte de minha vida. Assim como o teletransportador (quem nunca pensou nisso que atire a primeira pedra).

Imaginar como será o amanhã sempre mexeu muito com a cabeça das pessoas. Cada um cria o seu e alguns até o dividem com os outros. Sérgio Rodrigues, em As sementes de Flowerville, tem como cenário um futuro próximo. Muito próximo. A história do péssimo caráter Victorino Peçanha se passa num tempo que não é o atual, mas também não está tão longe assim que tenha robôs, carros voadores ou teletransportadores. E é assustador. Porque se parece muito com agora. A diferença maior está nos celulares. As pessoas não podem mais usá-los porque ficou comprovado que eles causam câncer. E também nos carros, que são, obrigatoriamente, blindados. O futuro de Sérgio Rodrigues tem como cenários o belo Flowerville — megacondomínio de classe média alta — e a triste e perigosa Nova Esplanada — um empreendimento que não deu certo. Aliás, deu muito errado.

Peçanha (ou Peçonha, como muitos gostam de chamá-lo pelas costas) herdou meio posto de gasolina em tempos idos e, com a ajuda de alguns militares que passaram pelo seu caminho, enriqueceu e passou a atuar no ramo imobiliário. Depois do fracasso com Nova Esplanada, acertou a mão com Flowerville. Seu escritório fica no condomínio, e é de lá, no prédio que chamou de Pessanhah Tower, que ele controla tudo e todos. Entre uma espiada e outra na vida dos moradores — sempre haverá alguma boa imagem captada por uma das milhares de câmeras instaladas por lá — come um sanduíche Pessanhah Special e delicia-se com alguma garota bem novinha ajoelhada entre suas pernas. O sonho de Peçanha, além de jamais ver um filho seu no mundo, é “salvar a democracia”, melhorando o sistema de votação: descobrir uma forma para que, cada voto tenha o exato peso da importância da pessoa que votou.

Não é justo que o filho playboy e vagabundo de um membro de ponta de Flowerville, advogado de causas milionárias, tenha um voto com peso igual ao do pai, isso parece justo? Também não faz sentido que a mulher desse mesmo sujeito passe o dia no cabeleireiro e no shopping torrando a grana do infeliz e tenha, na hora da eleição, a mesma voz que ele.

Claro que isso seria uma experiência, primeiro no Flowerville. Depois, quem sabe, um modelo para a cidade, o estado, o país, o mundo!

Para fazer com que esse sonho aconteça, Peçanha espera contar com a colaboração de um matemático que consiga inventar uma fórmula para levar a cabo a idéia. É aí que entra Neumane. Ele é o tal matemático. Mora em Nova Esplanada com a mulher, Nora, uma escritora que desistiu do sexo (com ele, pelo menos) há anos. Neumane também tem um sonho: decifrar o último teorema de Fermat, uma espécie de Santo Graal da matemática. Vive para isso há anos. O interessante é que esse teorema foi decifrado em 1995, por um professor britânico. No livro, que teoricamente se passa no futuro, isso acontece no presente. E é passado. Interessante essa (a)temporalidade futuro-pretérita.

Nora é infeliz demais e tem síndrome do pânico. Mas, mesmo assim, tem um papel fundamental percebido ao final do livro. Também passa pelas páginas de As sementes de Flowerville o general Boaventura, capacho de Peçonha, com resquícios melancólicos do militarismo terrível ao qual esse local (não há menção a cidade ou país em que esse livro se passe — pode ser qualquer um, há indícios de que seja no Brasil, mas tudo é possível) foi submetido em um passado recente. Ou seria futuro distante? Presente-pretérito? It doesn‘t matter, como diria Peçonha, que adora colocar termos em inglês nas frases. Outro personagem-chave é o velho Mirândola, inimigo mortal de Peçanha. E chega de detalhes.

Apesar de uma certa confusão temporal, As sementes de Flowerville é um livro muito direto. Seco quando precisa ser assim. Suave quando precisa ser assado. Mas objetivo. Porque, acima de tudo, trata do ser humano. Dos desejos que movem o homem. De amor, melancolia, ódio, vingança, paixão, sexo, dinheiro, ganhos, perdas, poder, política. A linguagem é ágil, coloquial, fácil.

De cabeça para baixo Flowerville fica diferente, pensou Gabriel, antes de começar a vomitar. Aí não viu mais nada até que o fortão preto que o segurava pelas pernas o trouxe de volta à cabine do helicóptero. Deram-lhe água, passaram uma toalha em seu rosto. Eram, no aparelho, três homens de terno preto e óculos escuros, além do piloto, que vestia uma lacoste cinza, e ele, Gabriel, de camiseta dos Strokes.

Havia tempos que eu não lia nada tão intenso e, ao mesmo tempo, fluido, simples. E surpreendente, também. As últimas 15 páginas são reveladoras. Amarram toda a história. Todos os personagens. Passado, presente e futuro, tudo ao mesmo tempo. Agora.

As sementes de Flowerville
Sérgio Rodrigues
Objetiva
133 págs.
Sérgio Rodrigues
Editor e colunista (A Palavra É… e Todoprosa) da revista eletrônica www.nominimo.com.br. Em 2000, publicou o livro de contos O homem que matou o escritor; em 2005, veio com as crônicas em What língua is esta?. As sementes de Flowerville é seu primeiro romance.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho