Bem-dentro. Por meio da ficção admirável de Luiz Ruffato, nós como leitores penetramos um mundo, uma realidade que a princípio nos parece estranha, mas que afinal de contas faz parte da nossa experiência humana. Ausência, abandono. Inaptidão, solidão. Ficamos (cons)cientes do fato de que participamos desse mundo, e reconhecemos os nossos próprios remorsos e rancores que condicionam os caminhos que tomamos. Por enquanto, aliás, somos também sobreviventes.
Somos também sobreviventes não necessariamente porque as nossas vidas espelham a pobreza e a violência retratada nos contos de Ruffato, mas porque a linguagem ao mesmo tempo coloquial e complexa pela qual esses contos são narrados nos guia a uma parte de nós mesmos que tenta agüentar, ou mesmo superar o pior da vida cotidiana, para (nem sempre) alcançar o que ela nos oferece de melhor: de sobreviver, enfim. Quem nesse mundo de leitores cultos não sentiu aquela ânsia da Dusanjos: “Ah, queria morrer e não queria” (em O Alemão e a Puria)? Ou aquela “tristeza danada” que “varreu o Vanim”, em A Decisão?
Não é difícil refletir sobre as duas primeiras obras de Luiz Ruffato ao mesmo tempo, porque apesar de ambas serem livros de contos, há uma continuidade que perpassa não só de um conto a outro, mas de uma obra a outra. E perdura. Ou seja: tanto Histórias de Remorsos e Rancores [1998] como (os sobreviventes) [2000], ambas editadas pela Boitempo, compartilham personagens. O mundo tanto universal quanto específico da cidade mineira de Cataguases é pano de fundo para esses treze contos no total: sete no primeiro livro, seis no segundo.
As vidas penosas dos personagens de Histórias de Remorsos e Rancores se entrelaçam num canto particular de Cataguases: o Beco do Zé Pinto ali na Vila Teresa, que “alembra” o cortiço de Aluísio Azevedo do final do século 10. É ali que as mulheres como a Bibica ainda batem pano na pedra, se ocupando das lavagens de roupa, enquanto os homens (a maioria cachaceiros) freqüentam a Ilha à noite, e perdem a hora quando não atendem o apito da fábrica. Todos os desejos mais perversos e ao mesmo tempo corriqueiros vêm à tona nesse ambiente comunitário. Apesar do convívio íntimo, os habitantes do beco exprimem uma “doida solidão”. As angústias e as desgraças são tão permanentes como as teias de aranha e os picumãs pendurados nos caibros dos barracos.
De vez em quando o cosmos retratado por Luiz Ruffato atravessa a ponte nova de Cataguases e escapa em direção à cidade grande, ora provedora de sonhos, ora “comedeira de gente” e daí segue avante para incorporar um mundo além, cada vez mais amplo. Por exemplo, o primeiro conto de Histórias de Remorsos e Rancores realça a ambição musical que seduz o Vanim para fora do Beco. Esta decisão egoísta o conduz ao abandono de sua esposa Zazá e a uma traição mais vasta e humana. Da mesma forma, o conto Amigos reproduz um diálogo de confronto entre gente que vai de Cataguases (e às vezes volta) e gente que fica, pondo em foco a discordância das escolhas na vida de amigos de infância— Gildo e Luzimar — agora já adultos. Gildo é aquele que incita o amigo com a força das palavras: “Você tem que largar esse buraco, ir embora…”. O conto certamente enfatiza as diferenças de rumos entre estes dois indivíduos. Mas além disso, o final parece salientar a insatisfação geral que predomina mesmo quando as pessoas tomam decisões definitivas (e neste caso opostas) quanto a seus destinos.
Como o título do segundo livro de contos— (os sobreviventes) — nos indica, muitas vezes só o que nos resta é sobreviver. Aqui, as referências ao Beco do Zé Pinto parecem reduzidas porque os personagens postos em foco já ultrapassaram a fase da vida regida por remorsos e rancores para habitarem um mundo decadente condicionado pelo isolamento (dentro de um espaço particular sugerido pelos parênteses do título). O mero ato de viver vai contra as suas vontades. As soluções já não partem dos indivíduos (veja a pobre Hélia do conto A Solução). Há um certo resígnio que permeia as vidas destas criaturas desamparadas (onde estão aqueles personagens secundários de confiança como o pipoqueiro seu Marlindo e a lavadeira Dona Zulmira?). O ato de união e o processo de comunicação são inatingíveis (não é à toa que a carta do João para a Laura acaba na lata do lixo em Carta a uma jovem senhora). No último conto, Aquário, uma viagem de carro permite mãe e filho pródigo reviverem o passado desencontradamente, um passado doloroso que se imprime pesarosamente no presente trágico.
As inovações da linguagem — pontuação experimental e criatividade tipográfica, por exemplo — permitem esse tipo de percurso oblíquo memorialista que entra em choque com uma temática realista em si reforçada pelo linguajar mineiro. Temos, assim, ao vivo, o embate constante entre o passado e o presente; entre o conhecimento e a ignorância; entre o dito e o não dito; entre diálogos e pensamentos; entre Bach e Beethoven; e até mesmo, como no caso do Carlinhos de Aquário, entre as lembranças que “chicoteavam suas noites” e a vontade de “deslembrar [sua] história”. A linguagem resplendentemente rica de Ruffato põe a escassez desses sobreviventes a compasso com as nossas vidas, as nossas misérias. E nos faz alembrar e deslembrar ao mesmo tempo que o veneno da tristeza também corre em nossas veias. Bem-dentro.