Num pequeníssimo poema de cinco palavras, Orides Fontela talvez tenha explicado não apenas sua poesia, mas certamente até mesmo a conduta diante de sua obra. Uma obra fulgurante. Uma poesia que parece, de repente, crescer mais a cada leitura, a cada procura pelas palavras, a cada sentido da descoberta:
Leio
minha mão:
livro
único.
Não é único livro. É livro único. A trajetória de Orides Fontela dentro e diante da poesia foi toda de brilho. Quem com ela conviveu não esquecerá nunca uma inquietação que beirava a um tom de perplexidade diante de tudo, aquele gesto impossível de construir para mudar alguma coisa, especialmente o poema. A poesia, no fim, transformou-se na sua única razão de viver. Não há exagero nessa afirmação. Nada lhe interessava mais do que a palavra, a possibilidade da palavra, a fala íntima que se dizia.
O poeta Donizete Galvão tem razão quando afirma ser impossível falar de Orides Fontela sem comentar a sua vida tão atormentada, numa seqüência de depressões e doenças. Donizete Galvão adverte, no entanto, chamando a atenção para o que considera um equívoco: “Há uma tendência para fazer de Fontela uma vítima da sociedade. Muitos querem compará-la a Cruz e Souza ou a Lima Barreto. Ela mesma em uma entrevista disse que era a poeta mais pobre do Brasil”.
Impossível, ao comentar sua poesia, não lembrar de sua vida. Uma certa comiseração que tinha por si mesma, o que, de alguma maneira, reflete-se na sua poesia de poucas palavras, o poema pelo poema, a poesia pela poesia, que não lhe parecia ser grata nem um instante de magia. A poesia, certamente, era-lhe mais uma dor, dessas que tinha de assumir todos os dias, todos os instantes, especialmente já perto do fim da vida.
Falou pouco a jornalistas de suplementos culturais ou críticos literários, o que fez bem. Jornalistas e críticos literários não são pessoas confiáveis. Mas do pouco que se sujeitou a falar, restam algumas frases que sinalizam para a sua maneira de encarar a vida e sua pobreza, como fazia questão de destacar. Por exemplo: “Eu estou mal por causa do problema social, da proletarização total. Eu poderia trabalhar até como faxineira. O problema é que sou péssima dona de casa, só sei mesmo escrever poesia e disso não se vive no Brasil”.
Nasceu no interior de São Paulo, em São João da Boa Vista, em 21 de abril de 1940. O primeiro poema foi escrito aos sete anos. Sempre destacou que sua família não tinha cultura, que seu pai era operário analfabeto, coisas assim. Não demonstrava ressentimentos, mas um certo incômodo que carregou consigo enquanto teve a lucidez suficiente para tentar compreender certos descaminhos. Quando chegou a um tormento que passou a fazer parte de si, essas lembranças certamente morreram na sua memória. Veio para São Paulo, conseguiu cursar Filosofia na USP. Com a ajuda de Davi Arrigucci Jr. publicou seu primeiro livro, Transposição. A seguir, foi bibliotecária em várias escolas públicas. O final da vida foi melancólico, o que revela bem essa face perversa de um país que vive somente de discursos. O retrato final de Orides é o retrato mais perfeito do Brasil. Despejada de seu apartamento no centro de São Paulo, por falta de pagamento, foi morar de favor na Casa do Estudante, um prédio caindo aos pedaços na avenida São João, aquela mesma São João que já fez parte do romantismo paulistano e que hoje representa a decadência de uma cidade sem saída. Acabou se desentendendo com quase todos seus melhores amigos. Praticamente morreu sem ninguém em Campos do Jordão, na Fundação Sanatório São Paulo, de insuficiência cardiopulmonar, em 4 de novembro de 1998, aos 58 anos de idade.
Tal parágrafo mais parece o fichário de alguém que simplesmente morreu, foi enterrado e ponto final. Mas não é assim. Não pode ser assim. Se o Brasil fosse um país civilizado, não teríamos tais descalabros. Talvez não se deva mesmo compará-la a Cruz e Souza nem a Lima Barreto. Talvez. No entanto, as histórias são as mesmas. Este país gosta de cultivar as mediocridades.
Rico e inesgotável
Mas estamos falando de Orides Fontela, uma poeta brasileira, autora de livros marcantes de poesia. Antonio Candido explica a poesia de Orides com poucas palavras: “Orides Fontela tem um dos dons essenciais da modernidade: dizer densamente muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade multiplica as suas possibilidades”.
Antonio Candido diz ainda: “Denso, breve, fulgurante, o seu verso é rico e quase inesgotável, convidando o leitor a voltar diversas vezes, a procurar novas dimensões e várias possibilidades de sentido”. Observa que os poemas de Orides “podem parecer às vezes malabarismos, mas é fácil ver que o jogo de palavras ou o aparente truque sintático correspondem, pelo contrário, a uma mensagem atuante. O que pode parecer acessório é o fato essencial”.
Percorrer a Poesia reunida de Orides Fontela, sua obra escrita entre 1969 e 1996, representa uma viagem pelo o que de melhor produziu a poesia brasileira contemporânea. Escreveu pouco, mas o suficiente para ser a poeta que é. Foram seis livros: Transposição, (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo (1988) e Teia (1996).
No poema Carta, de seis palavras, página 295, ela diz com a certeza de que nada é deslumbrante como alguns podem pensar:
Da
vida
não se espera resposta.
Não se trata apenas de um poema. Nesse poema está, na verdade, o sentido da existência que tinha essa mulher em relação a tudo que a cercava, que ela talvez nem notasse por absoluta falta de interesse. Chega-se a um ponto em que as coisas todas deixam de ser necessárias. Isso Orides deixa claro na sua poesia, uma amargura nada literária, mas transformada em literatura, em poesia, aquela dor invisível que salta dos olhos, essa dor que utilizou com a ferramenta de toques leves, como se o poema fosse uma planta e ela um jardineiro com a missão de salvar a possibilidade de seu jardim.
Como a brincar com as palavras e o poema, escreveu também alguns sonetos metrificados. Dói o que dedicou à irmã que nasceu morta, escrito em 26 de fevereiro de 1962. O primeiro quarteto diz: “No opaco silêncio estátuas virgens/ de sal e luz tombaram, desmembradas/ no abismo das lúcidas origens/ dormem nomes e formas olvidadas”.
O poema Bodas de Caná, do livro Alba, página 156, termina assim: “Para os anjos a/ água. Para nós/ O vinho encarnado/ sempre”. No poema Cisne, do mesmo livro, página 153, ela adverte que humanizar o cisne é violentá-lo, o que pode revelar o olhar para o que existe como é, sem artifícios ou invenções. Mais do que uma figura poética, uma constatação existencial. O poema Rebeca, do primeiro livro Transposição, página 63, explica melhor: “A moça de cântaro e seu/ gesto essencial: dar água”. Nada mais simples de a vida ser o que é, ou o que deva ser.
No primeiro livro, Transposição, um poema de Orides parece dizer o que haveria de ser, o que estava por vir, na poesia e na vida. O poema Fala lembra que toda a palavra é cruel, como falava Rilke de seus anjos, do terrível, da perversidade. As palavras são cruéis. Sempre serão cruéis. Boris Vian advertiu: “somos educados em gaiolas, vivemos mastigando pedaços de seios arrancados sangrando”. As palavras de Boris Vian cabem aqui. Em sua estréia, Orides chamou a atenção para a crueldade das palavras, equivale dizer da crueldade do poema e da poesia. Nesse poema está a sinalização, ou a revelação de toda sua obra poética, realizada com poemas de poucas palavras, um universo em síntese, que talvez não seja necessário explicar. Em alguns casos, basta certamente um ponto final.
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
No fundo, percorrer os poemas de Orides Fontela remete a uma tristeza difícil de apagar. Poetas assim fazem falta para combater as falcatruas na rotina da poesia brasileira. Orides Fontela morreu sem o reconhecimento que o país lhe deveu em vida. E lhe deve ainda. Morreu e teve ao final da vida a companhia de alguns gatos que certamente lhe ofereceram algum conforto. Orides morreu com alguns gatos. Hilda Hilst morreu com 70 cães que habitavam sua casa. Uma das preocupações de Hilda era o que seria feito de seus cães caso ela morresse. No entanto, não é assim, ou pelo menos não devia ser assim. Orides era e é uma estrela e nunca se percebeu. Impossível não lembrar de sua vida, mesmo numa resenha literária. Até porque ela buscou na poesia o que sempre lhe faltou. Transformou em beleza o que a ela se mostrou quase sempre como ruínas. Nessas ruínas, no entanto, ela buscava a possibilidade de respirar. Os poemas não dizem a verdade. A matéria-prima que tinha nas mãos era árida, de uma aridez que beirava ao fim de tudo. Mas daí ela tirou as palavras mais exatas para construir o poema de tanto brilho que ela nunca imaginou, escondida que estava da vida, nos becos de si mesma, onde a luz é uma dádiva e a vida uma espécie de milagre.